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Ucrânia: "Foi como se despedaçassem minha alma", diz curadora de museu; perdas do patrimônio somam € 2,4 bi

A guerra na Ucrânia já causou € 2,4 bilhões de prejuízos em destruição do patrimônio e para o setor cultural do país. Em Kherson, cidade liberada pelo exército ucraniano em novembro, mais de 10 mil obras foram roubadas pelos russos do museu de arte — que possuía uma das mais ricas coleções do país. A curadora do museu, que viveu os oito meses de ocupação da cidade, assistiu impotente o saque das peças do acervo. 

A curadora do Museu de Arte de Kherson, Anna Skripka, em meio aos painéis da reserva do centro de artes, completamente vazios, após terem sido roubados pelos russos.
A curadora do Museu de Arte de Kherson, Anna Skripka, em meio aos painéis da reserva do centro de artes, completamente vazios, após terem sido roubados pelos russos. © Anastasia Becchio / RFI
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Anastasia Becchio, da RFI

Ao todo 248 monumentos avariados foram contabilizados pela Unesco na Ucrânia, de acordo com uma avaliação publicada nesta segunda-feira (3). A guerra também gerou € 13,9 bilhões de perdas para o setor de lazer, arte e turismo. 

Na reserva do Museu de Arte de Kherson, um santuário escondido no fundo de um corredor com paredes grossas, restam apenas as grandes fileiras de painéis de malha de ferro totalmente vazios. Somente algumas folhas de papel branco suspendidas por um cordão no começo de cada fila lembram, que há pouco tempo, centenas de quadros estavam preservados no local. 

Antes do começo da invasão russa da Ucrânia, importantes trabalhos de restauração do museu estavam previstos. Uma parte da coleção tinha sido então guardada na reserva. 

"Os quadros estavam suspensos nas malhas, dos dois lados", conta à RFI Anna Skripka, pontuando sua fala por suspiros. "Havia obras de pintores ingleses, alemães, holandeses dos séculos 16 e 17, mas também de pintores locais. Estas obras foram as primeiras presas dos invasores russos", continua a curadora do museu, de 51 anos, ex-professora de história, que assumiu o cargo apenas alguns meses antes das forças russas ocuparem a cidade, em março de 2022. Antes da guerra a coleção somava aproximadamente 14 mil peças. 

Três meses depois, uma nova diretora do museu foi imposta pelas forças de ocupação russas, Natalia Desiatoya, mais conhecida em Kherson como a cantora do café do teatro. 

Anna Skripka decidiu continuar em seu posto, com o aval das autoridades ucranianas, salienta ela, para "estar próxima da coleção, ver o que eles faziam". Mas quando os russos anunciaram a retirada geral da cidade em direção à margem esquerda do rio Dnipro, em outubro, sob pressão da contraofensiva ucraniana, ela foi dispensada do trabalho pela direção. 

Pilhagem 

Como Skripka morava ao lado do museu, duas vezes por dia circulava pelo estabelecimento para tentar entender o que os russos estavam tramando. Em 1º de novembro, ela foi novamente convocada ao museu e encontrou dezenas de pessoas, incluindo "dois chechenos armados".

"A diretora me disse que o Ministério russo da Cultura tinha enviado essas pessoas para controlar o processo de mudança", lembra ela. "Neste momento, eu quis ir embora, mas me fizeram entender que não era possível, eu não tinha escolha. Me perguntaram onde estavam as obras mais preciosas", conta. 

Skripka também foi conduzida até o cofre-forte e obrigada a abrí-lo. "Eles me disseram que sabiam o que o cofre continha. Tínhamos espiões dentro do museu, o que facilitou o trabalho deles", afirma.

A funcionária do museu foi obrigada a se instalar em seu computador para registrar a retirada, sem poder guardar uma cópia do inventário. Os russos levaram o disco rígido, mas a curadora se lembra de um número: 14 mil peças foram, segundo ela, levadas. "A cada quadro levado, era como se despedaçassem minha alma, pedaço por pedaço", lamenta.  

Às pressas, sem precauções, dezenas de pessoas carregaram em veículos uma grande quantidade de pinturas, gravuras, desenhos, porcelanas e imagens preciosas. A curadora assistiu as idas e vindas impossibilitada de fazer qualquer coisa, com o sentimento de ver desaparecer a cultura de sua cidade, cuja história data de bem antes do século 18, quando o príncipe Potemkine, o favorito de Catarina, a Grande, fundou uma colônia russa.

Reescrever a história

Para Skripka, o saque é um sinal de que "os russos querem se apropriar de qualquer coisa que não os pertence e reescrever a história ao ponto de transformá-la completamente".

"Estas terras foram habitadas pelos citas e pelos cossacos ucranianos", comenta a curadora, "dizer que tudo começou com o príncipe Potemkine é deformar a história. Eles querem nos privar das últimas provas de nossa própria história, para que não possamos dizer que somos um povo diferente, uma família diferente, que tem seu próprio passado, que em um momento, é verdade, se entrelaçou ao da Rússia", continua.

No museu vazio, ela não perde a esperança de um dia trazer de volta o acervo que representava “uma joia para a cidade”.

A diretora-geral da Unesco, Audrey Azoulay, a vice-ministra das Relações Exteriores da Ucrânia, Emine Dzhaparova, e o ministro da Cultura e Política de Informação, Oleksandr Tkachenko, participam de uma coletiva de imprensa em frente à Catedral de Santa Sofia, em meio ao ataque da Rússia à Ucrânia, em Kiev, Ucrânia, 3 de abril, 2023.
A diretora-geral da Unesco, Audrey Azoulay, a vice-ministra das Relações Exteriores da Ucrânia, Emine Dzhaparova, e o ministro da Cultura e Política de Informação, Oleksandr Tkachenko, participam de uma coletiva de imprensa em frente à Catedral de Santa Sofia, em meio ao ataque da Rússia à Ucrânia, em Kiev, Ucrânia, 3 de abril, 2023. REUTERS - VALENTYN OGIRENKO

O estabelecimento cultural denunciou a pilhagem a tribunais internacionais e diversas investigações por roubo foram abertas. No porão do museu, Anna Skripka trabalha para identificar as cerca de 2,5 mil obras restantes e colocá-las em um local seguro. Do lado de fora, as explosões regulares lembram que nenhum prédio em Kherson está a salvo dos tiros.

De acordo com Audrey Azoulay, diretora-geral da Unesco, que estimou a necessidade total de financiamento para reconstruir e relançar o setor em € 6,4 bilhões, a organização vai apoiar as autoridades ucranianas na elaboração de um plano nacional de reconstrução do setor cultural. 

Sete sítios culturais ucranianos, além de um sítio natural, estão na lista do Patrimônio Mundial da Unesco, incluindo o centro histórico de Odessa (sudoeste), relativamente poupado em um ano de conflito, que se juntou à lista este ano. Dezesseis outros locais, incluindo o centro da cidade de Chernigov, danificado durante os primeiros meses da guerra, aparecem em uma lista "indicativa" da Unesco. Kiev deve apresentar uma candidatura para que estes integrem o Patrimônio Mundial da ONU.

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