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Coletivo pede devolução de máscara tradicional do Gabão comprada por € 150 e leiloada por € 4,2 milhões

Um objeto tradicional africano se encontra no centro de um imbróglio judicial na França. Um antiquário comprou uma máscara originária do Gabão de um casal de idosos por €150 e pouco depois vendeu o objeto por €4,2 milhões. Os aposentados agora pedem na Justiça que a venda seja cancelada, enquanto uma associação de gaboneses exige a devolução do objeto ao país de origem.

A máscara Fang vendida em um leilão em Montpellier, no sul da França, que data do século 19.
A máscara Fang vendida em um leilão em Montpellier, no sul da França, que data do século 19. AFP - PASCAL GUYOT
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Siegfried Forster,da RFI

Tudo começou em setembro de 2021, no departamento do Gard, no sul da França. Um casal de aposentados, muito idosos, queria esvaziar uma de suas propriedades e vendeu a um antiquário, entre outras coisas, uma máscara de madeira que encontraram no sótão. O valor de venda do objeto foi de € 150. 

Logo após, o negociante decidiu pesquisar a idade do objeto utilizando o método de datação por Carbono-14 e pedir ajuda a um antropólogo para saber mais sobre a peça. Ele então descobriu que se tratava de uma máscara do povo Fang, extremamente rara, originária do Gabão. 

Posteriormente o objeto foi oferecido em um leilão excepcional em Montpellier. Avaliada em € 300 mil, ela foi finalmente vendida a um comprador que ofereceu um lance de € 4,2 milhões, em março de 2022. O nome e a nacionalidade do comprador permanecem secretos. 

O casal de aposentados se sentiu enganado e apresentou queixa contra o vendedor de objetos antigos. 

"Claramente não foi um golpe. Os vendedores sabiam que vendiam uma máscara africana antiga, que vinha de um antepassado que morreu em 1931. Então, era obviamente uma máscara antiga autêntica. Não é uma questão de engano, mas simplesmente de valor das coisas", diz Yves-Bernard Debie, diretor geral do Parcours des Monde, salão internacional de referência em termos de artes da África, Oceania, Américas, Ásia e de arqueologia, em Paris, mas também advogado e conselheiro do comprador final da máscara Fang em questão.

“Coletado” sob circunstâncias desconhecidas

Antes da venda, o antiquário entrou em contato com o casal de aposentados para investigar a procedência da máscara de 55 centímetros de altura, maravilhosamente esculpida em uma madeira clara e fascinante por sua pátina de caulim. 

O homem de 86 anos explicou que seu avô, René-Victor Edward Maurice Fournier, era, na época, governador colonial na África e tinha “recolhido” a máscara por volta de 1917 em circunstâncias desconhecidas. 

Num mercado de arte cada vez mais rigoroso quanto à proveniência das obras, a informação poderia não ser considerada suficiente. Teria sido possível expor e vender esta máscara apenas com esta informação no Parcours des Mondes? 

“Uma máscara Fang recolhida em 1917, no Gabão, por um governador identificado, a proveniência é suficientemente clara para garantir lugar do objeto na maior feira do mundo e também num museu”, diz Yves-Bernard Debie.

Herança inalienável do povo Fang

No dia 26 de março de 2022, Solange Bizeau esteve presente na casa de leilões de Montpellier, não para comprar, mas para protestar contra a venda. Para ela, esta máscara rara do final do século XIX faz parte da herança inalienável do povo Fang do Gabão. 

“Sou gabonesa, da cultura Fang. Esta máscara não está à venda. Este objeto tem alma. Acho isto realmente chocante”, sublinha ela, que também é presidente do Coletivo Gabão Occitânia (CGO), que trabalha ativamente em Montpellier para a restituição da obra, especificando que se trata de uma máscara da sociedade secreta Ngil do povo Fang do Gabão.  

Para Yves-Bernard Debie, esta afirmação não tem base jurídica. “Podemos questionar a legitimidade de pessoas que afirmam poder falar em nome do Gabão ou de um grupo étnico. Esta é uma máscara que foi coletada em circunstâncias completamente corretas. Não há a menor razão para poder dar seguimento a um pedido de restituição como este", afirma. 

Détail du masque Fang vendu par un couple de retraités pour 150 euros et qui a été adjugé pour 4,2 millions d’euros en mars 2022 à Montpellier.
Détail du masque Fang vendu par un couple de retraités pour 150 euros et qui a été adjugé pour 4,2 millions d’euros en mars 2022 à Montpellier. © Pascal Guyot/AFP

O poder de uma máscara Ngil

Este tipo de pedido para provar a legitimidade de suas origens, Paul-Henri Gondjout Mbone Nze já ouviu muitas vezes. “Sou sobretudo gabonês, mas antes de ser gabonês sou da comunidade Fang. E eu mesmo sou neto e bisneto de um mestre Ngil, ou seja, um magistrado pertencente à irmandade da sociedade secreta Ngil. Esta é a minha legitimidade como herdeiro para exigir a devolução incondicional desta máscara", responde tranquilamente. 

Também membro do Coletivo Gabão Occitânia, ele tenta dissipar outros mal-entendidos ou ambiguidades. Paul-Henri explica que os ritos da comunidade secreta Ngil não foram abandonados e que as máscaras ainda desempenham um papel na sociedade atualmente.

“Isto ainda é praticado, embora tenha sido proibido desde a colonização, por volta de 1910. Mas a cerimônia Ngil ainda é praticada secretamente no Gabão", explica. "Qual é o propósito desta máscara? Concretamente, quando havia crimes ou pecados cometidos por habitantes de uma aldeia ou de uma cidade, quem trabalhava para restaurar a ordem, a justiça e a verdade era o magistrado Ngil que tinha uma identidade secreta. Ninguém sabia quem ele era. Mas, quando a máscara caísse, era preciso saber que era um momento em que a justiça iria funcionar, onde haveria sanções. E o Ngil nunca se enganou", diz. 

A máscara e os ancestrais

Para Solange Bizeau, é inimaginável que a máscara tenha sido vendida ou dada voluntariamente ao governador francês Fournier. “Nossos antepassados ​​nos disseram que os colonos lhes disseram que todos estes objetos eram apenas demônios, magia negra, coisas más e que tinham de se livrar deles. E até hoje eles ficam ricos com isso", denuncia ela. 

“Esta máscara foi simplesmente roubada e arrancada”, continua Paul-Henri Gondjout Mbone Nze. "Durante a colonização, esta era uma prática comum. A maioria dos governadores enviados à África compreendeu o interesse das obras de culto, ligadas aos ritos e à espiritualidade. Havia muitos negócios acontecendo. Eles entraram nas aldeias, semearam o terror e confiscaram todas as propriedades que puderam dos nativos para formar coleções extraordinárias", diz.

Durante a venda, a embaixada do Gabão em Paris “nos certificou que nos apoiaria para recuperar esta máscara”. Entretanto, houve uma mudança de regime no Gabão e o Coletivo está em processo de “retomar contato com os novos líderes da Cultura”. Hoje, o grupo declara ter apresentado queixa no tribunal de Montpellier contra o leiloeiro que vendeu o objeto, mas também contra os compradores e os descendentes do governador que possuíam a máscara. 

Por outro lado, para Mbone Nze, a briga judicial entre o casal de aposentados e o antiquário que tinha feito um bom negócio por € 150 nem deveria acontecer. “Hoje temos uma família que se sente roubada e diz ter sido enganada por um negociante de objetos de segunda mão, quando, no final das contas, há duas partes brigando por um objeto que não lhes pertence", diz. 

“Esta máscara ainda tem poderes”

Entretanto, o advogado do casal de idosos convocou o revendedor e suspendeu a venda. Eles estão pedindo o cancelamento total da transação por terem sido enganados sobre o valor do item. 

O caso será apresentado no dia 31 de outubro no Tribunal Judicial de Alès, no Gard. 

"Estamos lidando com uma questão de valor. No entanto, existe uma jurisprudência consistente que, de acordo com o artigo 1136 do Código Civil francês, não há nulidade de uma venda se as  partes se enganarem sobre o valor. Uma avaliação econômica imprecisa não é causa de invalidez", insiste.

A questão do valor também é importante, mas de forma diferente, para Solange Bizeau. Para a presidente do Coletivo, as questões do valor e da restituição estão no centro do caso seguido de perto por seus familiares no Gabão.

“Nossos pais estavam felizes, orgulhosos, por termos continuado neste combate. Nós tivemos que aceitar tantas coisas. Hoje há uma nova geração que não vai deixar isso acontecer. Aqueles que exigem esta máscara são apenas os netos e bisnetos dos ladrões e sequestradores, e nós somos os netos e bisnetos daqueles que foram roubados. A luta está aí. Hoje esta verdade deve ser revelada", insiste. 

Paul-Henri Gondjout Mbone Nze também não pensa em abandonar o assunto, muito pelo contrário. “Estamos muito felizes que a venda possa ser interrompida. O comprador em questão não pode se beneficiar do bem furtado e os descendentes do governador não podem lucrar com a venda. No final, o Ngil, máscara da verdade, está fazendo justiça! Tenho certeza que ele retornará ao povo Fang. É uma máscara que ainda tem poderes." 

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