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O Mundo Agora

As lições do fracasso do processo constituinte para a democracia no Chile

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No dia 17 de dezembro de 2023, os chilenos rejeitaram, por uma margem de 56% a 44%, a proposta de nova Constituição elaborada pelo Conselho Constitucional. Este é o segundo fracasso consecutivo de um processo constituinte no país, após o resultado negativo do plebiscito de 2022.

Partidários contrários à nova proposta de Constituição do Chile nas ruas de Santiago, antes do plebiscito deste domingo, 17 de dezembro de 2023.
Partidários contrários à nova proposta de Constituição do Chile nas ruas de Santiago, antes do plebiscito deste domingo, 17 de dezembro de 2023. AP - Esteban Felix
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Thiago de Aragão, analista político

A rejeição da nova proposta da Constituição é um duro golpe para a democracia chilena. Ela reflete a profunda polarização política que o país vive, bem como a crescente desconfiança da população nas instituições democráticas. Existem algumas lições importantes que podemos tirar desse processo no Chile.

A primeira lição é que a polarização extrema mina a confiança cidadã na real importância das transformações propostas. No caso chileno, as propostas apresentadas pela Assembleia Constituinte em 2022 e 2023 foram extremamente polarizadas, com uma visão radical de esquerda e outra radical de direita. Essa polarização, juntamente com o abandono da proposta apresentada em 2018, contribuiu para minar a fé dos cidadãos na real importância das transformações propostas.

A polarização é um fenômeno comum em democracias representativas, mas ela pode ser especialmente prejudicial em processos constituintes. Isso ocorre porque as constituições são documentos que buscam estabelecer um consenso sobre os valores e princípios que regem uma sociedade. Quando a polarização é extrema, torna-se difícil encontrar um denominador comum que seja aceito por uma maioria significativa da população.

Fake news

A desinformação é outro desafio importante. A campanha eleitoral para o plebiscito foi marcada pela disseminação de notícias falsas e boatos sobre a proposta constitucional. Isso contribuiu para confundir a população e dificultar o processo de tomada de decisão.

Esse processo de fake news é disseminado por uma variedade de atores, incluindo políticos, grupos de interesse e indivíduos. Ela é facilitada pelo uso das mídias sociais, que permitem a rápida disseminação de informações sem validade alguma.

O resultado do plebiscito também reflete a crescente desconfiança da população nas instituições democráticas. A Constituição de 1980, elaborada durante a ditadura de Augusto Pinochet, é amplamente considerada ilegítima pela população. O processo constituinte de 2020-2022 foi visto por muitos como uma oportunidade de corrigir os erros do passado.

No entanto, o fracasso do processo constituinte agravou a crise de confiança. Muitos chilenos acreditam que as elites políticas são incapazes de produzir um texto constitucional que seja aceitável para a maioria da população.

A segunda lição é que a necessidade de os partidos políticos consolidarem sua presença territorial e entenderem melhor as necessidades cidadãs é urgente. O processo constituinte se encerrou com milhões de chilenos optando por partidos como a Lista del Pueblo, de esquerda radical, e o Partido Republicano, de extrema direita, mostrando um vazio político em busca de referências sólidas.

A legitimidade da democracia representativa depende da representação efetiva dos interesses dos cidadãos. Quando os partidos políticos não conseguem conectar-se com as preocupações da população, eles perdem a legitimidade e a confiança dos cidadãos.

No caso chileno, a polarização do processo constituinte contribuiu para a fragmentação do sistema partidário. Isso tornou mais difícil para os partidos políticos representarem os interesses da população de forma efetiva.

Crise de confiança

O fracasso do processo constituinte é um momento de reflexão para a democracia chilena. O país precisa encontrar uma forma de superar a crise de confiança e de fortalecer as instituições democráticas.

Uma possível solução seria retomar o processo constituinte, mas desta vez com um enfoque mais moderado e consensual. Os partidos políticos deveriam deixar de lado suas diferenças ideológicas e se concentrar nos temas que unam a maioria dos chilenos.

Outra possível solução seria continuar reformando a Constituição de 1980 de forma gradual. Essa opção seria mais realista, já que seria mais fácil alcançar um consenso entre os partidos políticos. As reformas poderiam incluir medidas para fortalecer os direitos humanos, os direitos sociais e a democracia representativa.

Qualquer solução que for adotada, é importante que o processo seja transparente e participativo. A população deve ter a oportunidade de se envolver na discussão e de fazer suas vozes serem ouvidas.

O fracasso do processo constituinte é uma oportunidade para a democracia chilena aprender com seus erros. Se os partidos políticos, as instituições públicas e a população puderem trabalhar juntos para superar a crise de confiança, o país poderá construir um futuro mais justo e equitativo para todos.

A terceira lição é que as necessidades concretas dos cidadãos devem ser o foco central da ação política e ser atendidas com seriedade e eficácia. O governo deve mostrar resultados tangíveis, especialmente nas áreas de educação e segurança. Declarações pós-eleitorais dos líderes dos partidos devem ter correspondência em ações legislativas e na gestão de agendas colaborativas.

A democracia representativa só é legítima se for capaz de atender às necessidades dos cidadãos. Quando o governo não consegue mostrar resultados tangíveis, ele perde a confiança dos cidadãos.

No caso chileno, a rejeição da proposta constitucional foi em parte motivada pela percepção de que o processo não estava atendendo às necessidades dos cidadãos. A população chilena está preocupada com questões como desigualdade, acesso à educação e segurança pública. O governo chileno precisa mostrar resultados concretos na resolução desses problemas.

O futuro da democracia chilena precisa de vários pontos de convergência entre governo e oposição, mas também de algumas renovações básicas para que a principal parte nessa equação democrática, a sociedade, entenda e participe sem depender de alucinações cada vez mais típicas da esquerda e da direita na América Latina. 

Reformar o sistema eleitoral

O sistema eleitoral atual é majoritário, o que favorece a fragmentação política e dificulta a formação de maiorias estáveis. Uma reforma para introduzir um sistema proporcional seria mais favorável à representação da diversidade de opiniões da população.

Fortalecer os partidos políticos

Os partidos políticos são essenciais para a democracia, pois são responsáveis por organizar a representação dos interesses da sociedade. No entanto, os partidos políticos chilenos estão enfraquecidos, o que dificulta a formação de consensos. É preciso fortalecer os partidos políticos, tornando-os mais inclusivos e representativos da diversidade da sociedade.

Promover a educação cívica

É importante que a população esteja informada sobre os seus direitos e deveres cívicos. A educação cívica deve ser promovida nas escolas e na sociedade civil, para que as pessoas possam participar ativamente da vida democrática.

A democracia chilena está em um momento crítico. O fracasso do processo constituinte é um sinal de que o país precisa enfrentar desafios importantes. No entanto, também é uma oportunidade para a democracia chilena aprender com seus erros e construir um futuro mais justo e equitativo para todos. 

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