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Planeta Verde

Doar milhões para o Fundo Amazônia é ‘greenwashing’ de países ricos e poluidores?

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Com o fim do governo de Jair Bolsonaro, a retomada do Fundo Amazônia desperta o interesse de outros potenciais doadores para o mecanismo, além da Noruega e da Alemanha. Estados Unidos e França sinalizaram a intenção de contribuir para o programa, o mais importante para a proteção da floresta. Ao mesmo tempo, estes países têm em comum um passivo ambiental deplorável – estão entre os que mais exploram ou usam energias fósseis no mundo, as maiores responsáveis pelo aquecimento do planeta.

Plataforma de gás Sleipner A offshore na Noruega. País é o quarto maior exportador de gás do mundo. (01/10/2022)
Plataforma de gás Sleipner A offshore na Noruega. País é o quarto maior exportador de gás do mundo. (01/10/2022) AFP - OLE BERG-RUSTEN
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Lúcia Müzell, da RFI

A Noruega, de longe a maior contribuidora do fundo, com mais de R$ 3,18 bilhões de 2008 até agora, é também a 12ª maior produtora de petróleo do globo. Já a Alemanha pena a se livrar da dependência do gás natural na sua matriz energética e, sobretudo, do carvão – o maior vilão das emissões de gazes de efeito estufa, à frente do petróleo. Quase um terço da luz consumida no país ainda vem de centrais a carvão.

Neste contexto, a participação no Fundo Amazônia pode ser vista como uma forma de compensar esses e outros esqueletos no armário de noruegueses e alemães, mas também de americanos, os maiores emissores históricos de CO2 e outros gases nocivos, e franceses, oitavos no ranking mundial, na contagem a partir da Revolução Industrial. Mas, na visão de Carlos Rittl, especialista em políticas públicas da ONG Rainforest Foundation da Noruega e ex-secretário-executivo do Observatório do Clima, do Brasil, a responsabilidade histórica é justamente a principal razão para esses países bancarem a preservação do que restou de florestas tropicais no mundo.

“Essas contradições precisam ser enfrentadas, precisam ser discutidas e os países têm que ser pressionados a cumprirem aquilo com o que se comprometeram nos fóruns globais. Mas há algumas obrigações internacionais desses países desenvolvidos no âmbito, por exemplo, das Nações Unidas, de apoio a países em desenvolvimento para promoverem um desenvolvimento sustentável”, lembra.

“Então, o fato de a gente ter recursos vindos para o Fundo Amazônia, que a gente tenha segurança de que vão gerar impacto positivo seja para a proteção do meio ambiente como para redução de emissões, não pode ser visto como sendo o que a gente chamaria de ‘maquiagem verde’.”

‘Fins justificam os meios'

O cientista político François Gemenne, pesquisador da geopolítica do clima na Sciences Po de Paris, ressalta que, nos mecanismos de compensação desenhados na diplomacia internacional, é preciso estar sempre atento para que não se transformem em "instrumentos de greenwashing" pelos países ricos.

“Com frequência, a questão das compensações de emissões é envolvida por fraudes climáticas, como dupla contagem de corte de emissões para ambos os países. Esses mecanismos às vezes servem para os países evitarem enfrentar a redução das suas próprias emissões nacionais”, salienta. “Mas, ao mesmo tempo, existe um desafio crucial que é compensar financeiramente os países florestais pela queda ou o fim do desmatamento, já que hoje as florestas primárias são uma fonte considerável de recursos para esses países. Precisamos ajudá-los a encontrar outras alternativas econômicas”, observa.

Para o pesquisador belga, iniciativas como o Fundo Amazônia fazem parte do que ele considera ser uma responsabilidade global de salvar a maior floresta tropical do planeta. "Poderíamos acusar a Noruega de ser hipócrita ao continuar a aproveitar os benefícios da indústria petrolífera. Mas o fato é que hoje estamos numa situação de urgência e acho que temos que ser absolutamente pragmáticos, olhar para as soluções que nos permitam baixar já as nossas emissões de gases de efeito estufa, incluindo a queda do desmatamento”, constata.

"É claro que os países vão fazer isso por diversas razões: uns por grandeza, por se preocuparem com os nosso bem comum, o planeta; outros por lucros ou interesses. Mas acho que estamos um pouco numa situação na qual os fins justificam os meios. Acho que devemos evitar fazer julgamentos morais”, avalia Gemenne.  

Pressões internas

Essas contradições são alvo de pressões crescentes dentro desses países ricos. A Alemanha enfrenta uma onda de protestos contra a expansão de uma mina de carvão em Lützerath, no oeste do país. Já a Noruega promoveu a eletrificação em massa da sua rede de transportes, tornando-se o país com a maior proporção de carros elétricos por habitante no mundo. Entretanto, ambientalistas e políticos de esquerda acusam Oslo de ter atingido esse objetivo graças os recursos do petróleo – que apesar de estar com a produção em declínio, permanece a coluna vertebral da economia norueguesa.

Polícia alemã cerca manifestantes contra expansão da mina de carvão de Lützerath. (14/01/2023)
Polícia alemã cerca manifestantes contra expansão da mina de carvão de Lützerath. (14/01/2023) © INA FASSBENDER / AFP

“É importante que os recursos que hoje existem, ainda da economia do petróleo e dos combustíveis fósseis, promovam a transição energética. O que é necessário é que a gente tenha clareza de qual é o caminho que cada país vai adotar para a sua própria transição, para a eliminação da produção e consumo de combustíveis fósseis, assim como a transição para uma agricultura pecuária sustentável, a redução do desmatamento e outras ações fundamentais”, compara Rittl.

O cientista e ambientalista brasileiro lembra que Noruega e Alemanha têm metas de cortes de gases de efeito estufa de 50 e 55% até 2030, em relação aos índices de 1990, e atingir a neutralidade de carbono em 2050 e 2045, respectivamente.

Futuros contribuidores

Desde que foi criado, em 2008, o Fundo Amazônia já bancou mais de 100 projetos dos governos federal e estaduais, além de organizações ambientais. O mecanismo é gerenciado pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento).

Na recente visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva aos Estados Unidos, Joe Biden formalizou a intenção dos americanos de contribuir para o fundo, no valor inicial de US$ 50 milhões, conforme a agência Reuters. “O fato de a maior economia do mundo demonstrar confiança na governança do fundo é muito significativo e pode estimular outros países”, comentou Rittl.

A chanceler francesa Catherine Colonna, por sua vez, aproveitou a viagem que fez ao Brasil no começo do mês para ressaltar que Paris “estuda” a entrada no instrumento, assim como a União Europeia.

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