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Rendez-vous cultural

“A cultura é a melhor arma contra a guerra”, diz crítica de cinema ucraniana na Berlinale 2023

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A guerra na Ucrânia não mexe apenas com o tabuleiro político do mundo, com as vidas e o cotidiano de milhares de inocentes, obrigados a enfrentar as consequências de uma invasão injustificável. O conflito tem também um dramático impacto no mundo das artes. É o que atesta a ucraniana Elena Rubashevska, editora-chefe da Federação Internacional de Críticos de Cinema (Fipresci). Em entrevista à RFI durante a Berlinale, ela analisa o atual estado do setor cinematográfico ucraniano.

Elena Rubashevska, editora-chefe da Federação Internacional de Críticos de Cinema (Fipresci), durante a edição de 2023 Festival Internacional de Cinema de Berlim.
Elena Rubashevska, editora-chefe da Federação Internacional de Críticos de Cinema (Fipresci), durante a edição de 2023 Festival Internacional de Cinema de Berlim. © Daniella Franco/RFI
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Daniella Franco, enviada especial da RFI a Berlim

Nesta 73ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim, o povo ucraniano é homenageado, através da exibição de filmes e eventos paralelos. Na cerimônia da abertura, na semana passada, o presidente Volodymyr Zelensky realizou um contundente discurso, reforçando o pedido por ajuda para o fim da guerra e emocionando a plateia.

O apelo também se reflete nas produções selecionadas para a Berlinale 2023. A começar por "Superpower", badalado documentário de Sean Penn e Aaron Kaufman, que apresenta um retrato de Zelensky. Há exatamente um ano, os diretores estavam em Kiev, sem suspeitar que testemunhariam o início de uma longa e sangrenta guerra – uma situação que rendeu uma forte publicidade ao trabalho, considerado sensacionalista por parte da crítica.  

Menos hollywoodianas, várias outras produções ucranianas exibidas na Berlinale também tratam do conflito ou das consequências dele. É o caso dos documentários "In Ukraine", de Piotr Pawlus and Tomasz Wolski, "Iron Butterflies", de Roman Liubyi, "Eastern Front", de Vitaly Mansky e ainda "We will not fade away", de Alisa Kovalenko.

No entanto, a crítica de cinema e cineasta ucraniana Elena Rubashevska, 30 anos, editora-chefe da Federação Internacional de Críticos de Cinema (Fipresci), expressa seu ceticismo sobre todo o burburinho em torno desses trabalhos. Integrante de um dos júris responsáveis pela premiação concedida pela entidade a filmes que competem em quatro mostras da Berlinale, ela também tem dúvidas sobre a imagem de ferramenta de soft power que tem o festival. 

"Como jurada e representante oficial de uma organização, eu deveria ser diplomática, mas como pessoa e artista, tenho a tendência de me deixar levar pela emoção e talvez julgar um pouco rapidamente", ressalta. "Infelizmente, eu observo como grandes festivais tentam manter seu status. Eles recebem financiamentos imensos, fazem muito buzz, convidam grandes estrelas, como a Kristen Stewart [presidente do júri desta edição da Berlinale]", diz a crítica de cinema e cineasta ucraniana. 

Essa é a primeira vez que Elena participa do Festival de Berlim, considerados um dos mais importantes do mundo e célebre por sua dimensão política. Mas, para ela, eventos menores e menos famosos trazem mais benefícios em termos de oportunidades de descobertas, debates e aprendizados.

"Não acho que a Berlinale vá promover mudanças políticas agora. Para chegar aqui de países como a Ucrânia ou Belarus você tem que saber dialogar e apresentar o seu trabalho. E isso é novo para gente: ainda estamos aprendendo como fazer parte da sociedade europeia. Acho que pessoas com pontos de vista alternativos, aqueles que querem verdadeiras mudanças no país, não sabem como entrar nessa indústria e se apresentar a ela", avalia.

Elena fala com conhecimento de causa. Vivendo na Alemanha depois de ter morado na Polônia, onde obteve status de refugiada, ela contou à RFI como escapou da guerra. A jovem é originária do Donbass, região do leste do país que é palco dos combates mais violentos entre o exército ucraniano e as forças russas.

"Nasci em Donetsk e vivi lá até terminar meus estudos. Depois me mudei para Kiev, mas minha família ficou em Donetsk, então eu voltava para lá de vez em quando. Um ano antes do início da guerra, eu comprei um apartamento em Bucha, o que foi uma má ideia porque o primeiro massacre da guerra ocorreu lá”, relembra.

A crítica de cinema conta que, desde então, não pôde mais retornar ao local. “É como se você saísse para ir na padaria e nunca mais pudesse voltar para casa. Eu entrei em um trem de evacuação em direção à Polônia, sem carregar nada comigo, documentos, dinheiro, nada.”

Na Polônia, após se instalar, Elena conseguiu voltar a trabalhar e colaborou com a realização de um festival de cinema. “Nunca pensei em viver em Berlim. Agora faz sentido permanecer aqui porque essa é uma cidade movimentada, onde muitas coisas acontecem. Para um refugiado, Berlim é uma cidade interessante”, avalia.

Cinema ucraniano em guerra

A jovem também tem uma visão crítica sobre os concorrentes ucranianos da Berlinale e expressa sua decepção sobre o estado do setor do cinema do país nesse momento. Segundo ela, a guerra também é instrumentalizada por profissionais do setor cinematográfico.

“Não estou participando dos eventos relacionados à Ucrânia aqui ou em outros festivais porque sei bem o que acontece: geralmente eles repetem as mesmas mensagens, o que eu não acho que ajuda, já que a situação na Ucrânia só piora. Muitos artistas estão se aproveitando dessa situação para conseguir financiamento, porque quando alguém fala frases mágicas como 'estou fazendo um filme sobre a guerra', vai conseguir patrocínio”, desabafa.

Elena deixa claro que torce pela Ucrânia e por seus compatriotas do setor cinematográfico, mas acredita que financiadores ocidentais deveriam prestar mais atenção em quem investem. “Muita gente está pensando só em si mesmo e não nas necessidades do país como um coletivo”, adverte.

A editora-chefe da Fipresci também expressa sua decepção com a associação do cinema ucraniano apenas com o conflito. “Meu país e sua cultura são muito mais que isso! E tantos filmes podem ser feitos... Sim, é importante falar sobre a guerra, mas não só sobre a guerra. Precisamos mostrar quem somos, pelo que estamos lutando”, diz.

Elena relata que dentro do setor cinematográfico, os financiamentos que já eram escassos, obedecem agora a uma demanda monotemática. Para ela, nos próximos anos, as produções ucranianas serão previsíveis.  

“É triste porque conheço muitos cineastas ucranianos e, antes da guerra, eles sonhavam em fazer comédias, filmes de romance, terror, mas isso não é prioridade agora. Talvez teremos grandes dramas sobre a guerra, mas, durante um certo tempo, será tudo muito limitado à situação política da Ucrânia”, lamenta.

Grande fã de ficções científicas, a jovem que também é cineasta e roteirista teve o financiamento estatal para um projeto de filme deste gênero recusado devido ao alto custo da produção. Ela resolveu então se dedicar a um trabalho sobre a região do Donbass, de onde é originária. “E então recebi dinheiro”, ri, ressaltando que sua intenção foi sincera, mas lamentando que a agenda do mundo paute de forma uniformizada a arte em seu país.

O fenômeno não é inédito, reconhece, citando a situação do setor artístico nos países dos Bálcãs. “Já faz trinta anos que a guerra acabou lá, mas há uma certa imagem que a comunidade internacional do cinema espera desta região e eles se dobram a isso. O mesmo acontece agora com a Ucrânia e, pessoalmente, não acho que é correto e não estou feliz com isso.”

Há uma alternativa para que a arte se sobressaia a essa demanda? Elena acredita que sim. Ela lembra que na época do império soviético, quando havia uma agenda imposta pelo regime, surgiram grandes nomes do cinema, como Sergei Eisenstein e Andrei Tarkovsky. “Ainda assim eles tiveram que se adaptar, sendo realmente inventivos e pensando como usar a verdadeira arte contra a propaganda”, observa.

Esperança para o futuro está na arte

A maioria dos amigos de Elena preferiu permanecer na Ucrânia para não se afastar das famílias e segundo, ela, “esperando que a guerra acabasse logo e que a vida normal pudesse recomeçar”. O pai da cineasta ainda está baseado em Donetsk e a mãe foi para Belarus.  

“É desafiador para nós porque a situação está ficando mais tensa a cada dia. Não sabemos se as fronteiras vão todas fechar e não poderemos mais nos ver. É muito difícil estar longe. A cada conversa, vem a frase: ‘vamos esperar que da próxima vez que nos falarmos teremos boas notícias’, mas não acho que isso acontecerá em breve”, diz, emocionada.

Elena deposita na arte sua esperança para o futuro e salienta: “a cultura é a melhor arma contra a guerra”. A jovem trabalha atualmente na futura edição do festival internacional de filme etnográfico Oko, que muito provavelmente não poderá ser realizado na Ucrânia. “Acredito que essa resistência pacífica é a melhor forma de realizar mudanças”, conclui. 

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