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Reportagem

Iniciativas de ex-pacientes mostram como a arte pode ajudar a superar e compreender doenças graves

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Paredes cobertas de obras de arte, em um ambiente envidraçado e aberto ao público. Esta poderia ser apenas mais uma galeria de arte, se não estivesse no centro do pátio de um imenso hospital universitário. O Espace Bulle, como o próprio nome sugere, é uma bolha de cultura e bem-estar em benefício de todo o público do Hospital Henri-Mondor, na região parisiense. Um projeto que utiliza a arte como uma importante aliada para a saúde, inclusive no tratamento de doenças graves.

A artista visual Isabelle Gueroult.
Um bloquinho para desenhar virou o companheiro e aliado de Isabelle Gueroult durante o tratamento de um câncer. © acervo pessoal
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Andréia Gomes Durão, da RFI

“Nós estamos comprometidos em um processo de desenvolvimento sustentável e social ambicioso para melhorar a qualidade de vida de profissionais e pacientes. Para nós, é primordial que um estabelecimento de saúde, que é aberto a todos, coloque à disposição dos seus usuários espaços de relaxamento, para respirar um ar mais leve, para sair um pouco deste universo tão urbanizado e cimentado que nos cerca. É uma ideia de saúde pública, em que todos – pacientes, famílias, profissionais, moradores da região – possam se beneficiar deste espaço”, explica Irma Bourgeon-Ghittori, encarregada de projetos da Direção de Cuidados e Atividades Paramedicais do Hospital Henri-Mondor.

Ela acrescenta ainda que o Espace Bulle tem a proposta de contribuir com o tratamento, mas também com a compreensão de doenças graves de uma forma multidisciplinar.

“Isso nos levou à decisão de realizar um projeto que é, ao mesmo tempo, integrador e inovador, em que se aplicam diferentes dimensões, como a arquitetura, a arte visual, a vegetalização, a biodiversidade, a cultura, o compartilhamento, a escuta do outro, o relaxamento e, principalmente, o cuidado.”

O Espace Bulle, uma galeria de arte e espaço de bem-estar em pleno pátio do Hospital Henri-Mondor, na região parisiense.
O Espace Bulle, uma galeria de arte e espaço de bem-estar em pleno pátio do Hospital Henri-Mondor, na região parisiense. © divulgação

Irma enfatiza a importância para a saúde do paciente de promover o bem-estar para todas as pessoas que o cercam. “Um hospital é um lugar onde as situações profissionais são difíceis de suportar, é uma fonte de estresse, e de cansaço moral. O objetivo deste espaço é sair um pouco deste universo, e ser aberto aos profissionais que estejam à procura de um lugar para se restabelecer, para reforçar laços, se encontrarem quando estão no hospital.”

Ela insiste no papel que a arte exerce em uma melhor compreensão da realidade dos pacientes, tanto da parte dos médicos quanto de seus familiares. “As exposições propostas no Espaço Bulle são muito variadas e permitem às pessoas se envolverem em função dos temas, sempre ligados ao cuidado com a saúde, e aproveitarem um lugar que busca simplesmente levar cultura ao hospital”, conclui Irma.

Um rabisco superstar

Isabelle Gueroult foi uma das pacientes a expor no Espace Bulle. Durante o tratamento de um câncer, um bloquinho de rascunho foi sua companhia para driblar o tédio. E seus desenhos, a princípio despretensiosos, logo passariam a traduzir todas as emoções visitadas na luta contra a doença.

“Eu criei um personagem para atenuar um pouco as dores, os questionamentos, essa revolta que eu tinha, porque eu comecei a desenhar no hospital enquanto aguardava meus tratamentos, que eram muito longos. Então eu inventei um pequeno personagem que me permitia me escapar um pouco. Esse personagem se chama Gribouille Superstar, e eu assumi um pouco essa identidade. Esse pequeno personagem é careca, foi quando eu não tinha mais cabelos. Quando eu me olhava, eu tinha a impressão de ser outra pessoa, na verdade. Ele também não tinha boca, porque quando eu soube da minha doença, eu fiquei sem voz”, ela lembra.

Gribouille Superstar, o personagem criado por Isabelle Gueroult, que, como ela, ficou "sem cabelos e sem voz" durante o tratamento de um câncer.
Gribouille Superstar, o personagem criado por Isabelle Gueroult, que, como ela, ficou "sem cabelos e sem voz" durante o tratamento de um câncer. © acervo pessoal

O nome de seu personagem, Gribouille Superstar, tem duplo sentido. Gribouille pode ser apenas um rabisco, um tipo de rascunho, mas também alguém ingênuo e perdido, que se vê em dificuldades muito maiores do que poderia prever.

“Agora eu começo, de vez em quando, a fazer uma pequena boca [no personagem]. Um pouco mais sorridente, um pouco interrogativa. E como as crianças gostam muito deste pequeno personagem, eu sempre desenho uma pequena boca para as crianças, porque, afinal, as crianças representam a felicidade”, afirma a agora artista visual.

Neste diário não escrito, mas desenhado, Isabelle revela cada etapa da doença, do tratamento, suas angústias e medos, o cansaço, a sensação de isolamento, traduzindo para o outro, em formas e cores, tudo o que aconteceu com ela.

“Há também os planos de fundo, como o espaço, como qualquer coisa que me faz ir em um mundo dos mortos e voltar para o mundo dos vivos. Isso são meus desenhos, uma mistura do mundo dos mortos com o mundo dos vivos, porque quando tomamos conhecimento da doença, nós não sabemos se vamos nos sair bem. Mas eu presto atenção, apesar de tudo, em manter a esperança e a vida em tudo o que faço”, conta Isabelle.

Brutalidade

Aos 37 anos, Julien Secheyron recebeu o diagnóstico de uma doença rara e ainda sem cura, a neuropatia óptica hereditária de Leber (NOHL). Em apenas três meses, o paciente perde grande parte da visão e a capacidade de identificar as cores.

“De repente, se está privado de tudo, tudo, tudo, quer dizer, não se pode escrever um e-mail, não se pode mais ler uma mensagem, estar no Whatsapp, não se pode mais retirar dinheiro no banco, reconhecer as notas de dinheiro, não se pode mais ver o que se está comendo, ver seu próprio rosto ou o de outra pessoa. É brutal! Então eu me vi sozinho, sentado no meu sofá, com um grande buraco negro na minha vida pessoal e profissional”, ele descreve.

E sob a brutalidade da notícia de que perderia quase completamente a visão, Julien tomou a curiosa decisão de escrever um livro. “Então eu me disse, por que não escrever um livro para mostrar que é realmente uma brutalidade? O fato que vamos perder tudo isso em três meses, mas que há muita esperança, graças à pesquisa médica, graças aos centros de adaptação, e graças também a outros que tiveram essa doença e foram capazes de superá-la, mostrando do que se trata, explicando o que podemos fazer. Este é um livro para novos pacientes, não apenas da doença NOHL. É também um livro para os acompanhantes, para os que cuidam, porque é uma coisa muito difícil de se compreender.”

Obra da "agora" artista visual Isabelle Gueroult, que passou a desenhar para lutar contra o tédio e as angústias durante seu longo tratamento contra um câncer.
Obra da "agora" artista visual Isabelle Gueroult, que passou a desenhar para lutar contra o tédio e as angústias durante seu longo tratamento contra um câncer. © acervo pessoal

Escrever “Vous ne verrez plus” (Você não verá mais) foi a forma que ele encontrou para expressar um momento intensamente assustador e transformador em sua vida e compartilhar o que viveu com outras pessoas. O livro lhe rendeu o prêmio Paroles des Patients 2023, o que poderia ser traduzido como palavras ou depoimentos dos pacientes, concedido por uma organização francesa de indústrias farmacêuticas.

“Essas informações dão esperança às pessoas, mas também servem para sacudir um pouco a esfera pública e privada sobre os deficientes, porque deficiente não é apenas quem está em uma cadeira de rodas, estamos falando também do famoso deficiente invisível, que são cerca de 10 milhões na França, que vão desde o deficiente visual, mas também o auditivo, aquele que tem diabetes, até o câncer. É este deficiente invisível que eu também quis colocar em evidência neste livro”, destaca Secheyron.

Temáticas e técnicas

Usar sua própria história de superação na luta contra o câncer em benefício de outros pacientes foi o que motivou a designer gráfica e ilustradora Camille Esayan a criar o ateliê criativo Créer comme respirer (Criar como respirar), em que ela utiliza uma combinação de temáticas e técnicas artísticas para dar aos participantes diversas formas de expressão.

“Eu decidi aproveitar essas ferramentas para outras pessoas, outros pacientes. Eu procurei associações de apoio após o câncer. Eu fui ao encontro de outros pacientes para propor a eles ateliês criativos com a ideia de que a arte pudesse ajudá-los a superar sua própria experiência da doença”, ela explica.

Artistas-pacientes do ateliê criativo Créer comme respirar (Criar como respirar), idealizado pela designer gráfica e ilustradora Camille Esayan.
Artistas-pacientes do ateliê criativo Créer comme respirar (Criar como respirar), idealizado pela designer gráfica e ilustradora Camille Esayan. © acervo pessoal

Com isso, o ateliê permite a essas pessoas revelar e dividir suas questões em torno da doença com outros pacientes por meio da arte. “Esses ateliês fazem todo um sentido porque nós nos encontramos entre pacientes, então, é um momento privilegiado, onde podemos fazer trocas, compartilhar percepções. Porque é exatamente esta sensação de dissociação em relação às outras pessoas, em relação mesmo ao próprio corpo, são esses sentimentos que dividimos”, descreve Camille.

Sentimentos que são compartilhados também, de forma descontraída e lúdica, com quem nunca passou pela mesma situação. Participantes do ateliê acabaram por formar o coletivo Marques de Fabrique (Marcas Registradas), que promove exposições de suas obras para o público em geral.

Camille Esayan usou seus talentos como designer e ilustradora para superar a luta contra um câncer. Hoje ela organiza ateliês para ajudar outros pacientes.
Camille Esayan usou seus talentos como designer e ilustradora para superar a luta contra um câncer. Hoje ela organiza ateliês para ajudar outros pacientes. © AntonYourtchouk

“Acho que exibir os trabalhos ao público em geral faz parte de uma evolução de entendimentos sobre a questão, sobre o olhar que lançamos sobre a doença, a forma de ver o câncer, a forma de ver os pacientes”, sublinha a artista.

Uma próxima exposição do coletivo, chamada “À corps ouvert”, tem vernissage nesta quinta-feira (16) e se estende até domingo (19) no endereço 60 Boulevard Chanzy, em Montreuil, na região parisiense. Participam da exposição os artistas Loïc Bertrand, Stéphane Boissonot, Lara Bouvet, Soubattra Danasségarane, Draw your fight, Camille Esayan, Alaïa Etchegoin, Jeanne Fasquel, Pierre-Antoine Gruau, Gribouille Superstar e Séverine Schulte.

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