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Reportagem

França pode ter de pagar dívida trabalhista do Consulado do Brasil em Paris

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 A demissão de Tiago Fazito Pereira da Silva do Consulado do Brasil de Paris, em 2017, foi considerada arbitrária pela justiça trabalhista francesa, que ordenou a reintegração do funcionário. O Consulado recorreu da decisão, mas se nega, como manda a lei francesa, a reintegrar o trabalhador e a pagar os salários devidos. Sem conciliação possível, ele se vê obrigado a exigir que a França quite essa dívida trabalhista do Brasil que, segundo o advogado, João Viegas, “abusa da imunidade de execução”.

Os funcionários locais do Consulado-Geral do Brasil em Paris, em solidariedade à Associação Internacional dos Funcionários Servidores Locais do Ministério das Relações Exteriores, paralisarão suas atividades.
Os funcionários locais do Consulado-Geral do Brasil em Paris, em solidariedade à Associação Internacional dos Funcionários Servidores Locais do Ministério das Relações Exteriores, paralisarão suas atividades. RFI
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Tiago Fazito Pereira da Silva se formou em Belas Artes na Universidade Federal de Minas Gerais e veio a Paris fazer um mestrado, seguido de um doutorado, na Universidade de Paris 8. Em 2012, começou a trabalhar no Consulado-Geral do Brasil de Paris. Ele foi contratado como “assistente administrativo” de acordo com a lei trabalhista francesa, que é a que rege os contratos de trabalho de todos os funcionários locais tanto do Consulado quanto da Embaixada na França. As outras pessoas que trabalham na repartição brasileira em Paris são diplomatas e oficiais ou assistentes de chancelaria.

Em 2015, juntamente com outros colegas, Tiago criou e assumiu a presidência do Sindicato dos Funcionários Locais das Representações Diplomáticas do Brasil na França para defender os trabalhadores que “tinham os deveres, mas não os direitos garantidos pela lei trabalhista francesa”. Paralelamente, entrou na justiça com uma ação por “isonomia salarial”, alegando que fazia o mesmo trabalho de funcionários locais que ganhavam mais do que ele. Na época, o Consulado-Geral de Paris era chefiado pela embaixadora Maria Edileusa Fontenele Reis.

Tiago Fazito Pereira da Silva foi demitido “por justa causa” em abril de 2017, acusado de ter anexado ao processo documentos sigilosos.“Na verdade, eram documentos que eu tinha acesso no meu dia a dia de trabalho, mostrados para justificar que o trabalho que eu fazia era igual ao trabalho de outros funcionários que tinham salário expressivamente maior”, explica. 

Para ele, a demissão foi política.“Eu fui demitido sobretudo por dois motivos. Primeiro, eu montei o sindicato. O segundo motivo foi que participei de uma manifestação contra o impeachment da Dilma, fora do horário de trabalho, na frente do Consulado”, lembra. A manifestação aconteceu no primeiro semestre de 2016 e, segundo ele, “teve inclusive um diplomata que desceu para filmar as pessoas que estavam participando”.

Tiago Fazito Pereira da Silva, ex-funcionário do Consulado do Brasil em Paris
Tiago Fazito Pereira da Silva, ex-funcionário do Consulado do Brasil em Paris © Adriana Brandão

Demissão "arbitrária"

A demissão de Tiago Fazito Pereira da Silva foi contestada na justiça francesa pelo advogado dele, João Viegas. O Tribunal Superior de Paris (Cour d’Appel) considerou duas vezes, primeiro em uma medida cautelar e depois em uma decisão final, a exoneração arbitrária e ordenou a reintegração do funcionário, além do pagamento de indenizações. O Brasil se recusou a cumprir a determinação e entrou com um último recurso em uma instância superior (Cour de Cassation).

Esse processo ainda está em curso e será finalizado em setembro de 2024. No entanto, explica João Viegas, pela lei francesa enquanto não houver a decisão final, o Consulado do Brasil seria obrigado a reintegrar o trabalhador e a pagar todos os salários e indenizações devidos.

A cada dia que passa, a dívida só aumenta. Após sete anos, pelos cálculos do advogado, esse valor é hoje de cerca de € 300.000 (€ 296.369 em 1° de janeiro de 2024, ou mais R$ 1,6 milhão).

Uma empresa ou empregador comum já teriam tido seus bens confiscados ou penhorados para pagar a dívida trabalhista.

Imunidade de jurisdição e de execução

O advogado denuncia essa postura como um “abuso da imunidade” de que gozam as representações diplomáticas no exterior. “O Brasil já foi condenado por um tribunal, cuja competência reconheceu duas vezes, mas furta-se à obrigação de pagar e de executar essas sentenças, abrigando-se atrás da imunidade de execução de que beneficia e nos termos do direito Internacional”, detalha.

Essa imunidade se baseia no costume internacional e decorre do respeito mútuo que os Estados soberanos devem ter entre si. Em contrapartida a esse privilégio, um Estado que aceita se submeter ao direito de outro Estado, acata as decisões de seus tribunais. Em geral, poucos países, ditos “marginais”, não respeitam essa regra. Por isso, João Viegas está surpreso com essa atitude do Brasil, principalmente agora com a volta de Lula ao poder.

“Nenhum Estado com pretensões sérias a ter um papel ativo e responsável na vida internacional se coloca nessa situação de poder ser criticado como um Estado que, pura e simplesmente, não aceita as sentenças dos tribunais. É perfeitamente inconcebível. Enquanto o Bolsonaro, que é, digamos assim, uma pessoa cuja postura e o respeito do direito Internacional era no mínimo questionável, estava no poder ainda se podia conceber. Agora, com o Lula e com o governo que está apostado em ter cada vez mais um papel de relevo, essa contradição torna-se um bocadinho esquisita e eu espero que, enfim, deixe de existir”, critica.

Ele completa dizendo que “não podemos ter o Lula a encher a boca com o respeito da regra jurídica, como assistimos hoje em dia, por um lado, e, por outro, a dar ordens ou, pelo menos, aceitar que os seus serviços se comportem como maus pagadores”.

Advogado João Viegas
Advogado João Viegas © Adriana Brandão

Ação contra a França

A última carta pedindo o cumprimento das sentenças enviada por João Viegas ao cônsul-geral do Brasil na França, Fabio Marzano, com cópia para a Embaixada do Brasil, o serviço jurídico do Itamaraty e o advogado do Consulado, Denis Rosen, foi enviada em julho de 2023 e nunca foi respondida. Sem conciliação ou acordo possível, ele se vê obrigado a entrar com um pedido de indenização em um tribunal administrativo, exigindo que a França quite a dívida trabalhista do Brasil.

“Enquanto o Brasil permanecer nesta postura e enquanto não cumprir o direito básico, a única alternativa que tem o meu cliente é virar-se contra o Estado francês e pedir para ser indenizado do prejuízo que sofre, em razão de uma impossibilidade que advém das obrigações internacionais da França. Fizemos já uma reclamação no Ministério da Economia e agora vamos entrar em tribunal com uma petição de indemnização”, explica João Viegas.

Ações semelhantes acontecem sempre que empregadores maus pagadores fogem de sua responsabilidade. Como Tiago Pereira da Silva foi contratado pelas leis francesas, ele não pode recorrer aos tribunais brasileiros. O ex-funcionário “nunca imaginou que esse processo iria durar tanto tempo”. Ele vê “um certo descaso do Itamaraty com a justiça francesa”.

O caso não é isolado. Há pelo menos dois outros funcionários da representação diplomática brasileira em Paris demitidos no mesmo período, mas os processos ainda não foram julgados pela justiça francesa.

A situação envia um “sinal desastroso”, acredita João Viegas, nesse momento em que França e Brasil tentam se reaproximar e reforçar seus laços.

“Sinceramente, eu acho que é uma postura não muito inteligente do Itamaraty. Ela é duplamente faltosa. Primeiro, não se preocupa com as relações com a França. Segundo, não se preocupa com uma causa trabalhista, com um funcionário que trabalhava para o governo brasileiro”, avalia Tiago. Ele espera “que o governo brasileiro possa agir de uma forma racional e que execute o que foi decidido pela justiça francesa”.

A RFI procurou o Consulado-Geral do Brasil em Paris para saber a versão da instituição sobre o caso, mas até a publicação dessa reportagem não obteve resposta.

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