Enquanto a justiça brasileira está fazendo o seu trabalho frente às suspeitas de corrupção maciça da classe política, os “Panamá Papers” abalam o mundo. Nada menos do que dirigentes de quase 30 países são acusados de montagens financeiras opacas em paraísos fiscais.
Na lista, aparecem os habituais suspeitos na África, Ásia, América Latina, Europa do Leste e mundo árabe. Mas o furacão levou também o primeiro-ministro da Islândia e bateu feio no primeiro-ministro britânico e em partes do “establishment” francês. O ventilador das redes sociais globalizadas espalhou as denúncias pelo mundo inteiro. Todos os governos são obrigados a tentar dar explicações à opinião pública. As democracias vêm prometendo investigações judiciais severas. Uma Lava Jato mundial.
Esse escândalo não é o primeiro. E não há dúvida de que as medidas tomadas nos últimos anos tornaram bem mais difíceis essas montagens financeiras esdrúxulas. Depois da crise de 2008, os governos – sobretudo na Europa e nos Estados Unidos – tiveram que sangrar seus orçamentos e reservas para impedir que a economia derretesse. E agora precisam urgentemente de caixa. Washington e os governos europeus já lançaram uma ofensiva não só contra a fraude fiscal, mas sobretudo contra o que chamam de “otimização fiscal”. Esquemas perfeitamente legais utilizados pelas grandes empresas multinacionais para pagar menos impostos. Essa caça aos níqueis das empresas vem completar a tradicional ação policial para rastrear e recuperar as centenas de bilhões de dólares do crime organizado que também utiliza o sigilo das caixas postais em ilhas maravilhosas.
Mas apesar dos pesares, os paraísos fiscais e as empresas “offshore”, continuam funcionando muito bem obrigado. Pela simples razão de que não são só sedes de atividades criminosas e ilícitas.
'Matagal regulatório' empurra empresas para paraísos fiscais
Numa economia globalizada, as empresas que têm atividades em múltiplos países estão obrigadas a enfrentar um verdadeiro emaranhado de leis fiscais e normas contábeis, sem saber quais as que têm de ser respeitadas ou não. Uma sede na legislação “neutra” e camarada de uma ilha do Caribe ou do Oceano Índico – ou até em alguns Estados federais americanos – é uma mão na roda para administrar esse matagal regulatório. Além do mais, o que pode ser considerado “otimização” fiscal por um país, pode ser visto simplesmente como normal facilitação de investimentos para outro.
Não existe imposto global aplicado de maneira igual a todos os países. Cada sociedade decide – ou é obrigada a aceitar – a sua própria carga fiscal. Não há razão nenhuma para que a Irlanda ou o Luxemburgo aceitem um nível de imposição francês, dinamarquês ou americano. Nas democracias, tudo depende da história, da cultura, da relação ao Estado e aos serviços públicos de cada sociedade nacional. Acrescente-se a isto, a violenta concorrência econômica internacional, onde uma boa parte dos negócios seria impossível sem uma boa dose – legal é claro – de privacidade e segredo das transações. Um governo que pediria transparência absoluta a suas empresas as colocaria numa clara posição de inferioridade diante dos concorrentes estrangeiros.
"Panama Papers" revelam regras de convivência e conivência não escritas
Na verdade, os “Panama Papers” revelam um problema bem mais profundo do que meter a mão no bolso das multinacionais e lutar contra os corruptos. Em qualquer país soberano, as elites dirigentes – públicas e privadas, de esquerda ou de direita – só conseguem manter as instituições graças a regras de convivência e conivência não escritas. Cada grupo dirigente nacional tem a sua graduação implícita do que é lícito, ilícito e “tolerado”. Cada um tem a sua própria prática do que é “tolerado”, dos arranjos possíveis com a letra da lei. Um mundo de transparência total acabaria com essas regras implícitas e portanto com a argamassa que segura os estamentos nacionais e os permite governar.
Grande paradoxo: as campanhas das ONGs e da mídia global, tão necessárias e fundamentais para moralizar a vida pública, estão – queiram ou não - enfraquecendo os governos e Estados nacionais, já cada dia mais obsoletos diante da globalização da economia, das finanças, da informação e das redes sociais. Só que por enquanto não há alternativa democrática à soberania nacional. As empresas “offshore” ainda tem muitos anos de vida pela frente.
Alfredo Valladão, do Instituto de Estudos Políticos de Paris, faz uma crônica semanal às segundas-feiras para a RFI
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