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Aborto

Por que o debate sobre descriminalização do aborto demora a avançar no Brasil?

A descriminalização do aborto foi tema de audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF) nos dias 3 e 6 de agosto. O debate da ação ADPF 442 – proposta pelo PSOL, com assessoria técnica da Anis Instituto de Bioética - abriu espaço a ONGS feministas, entidades pró-vida, profissionais e órgãos de saúde nos últimos dias. Mas a discussão não parece ter esclarecido a sociedade sobre uma questão que ainda gera tanta polêmica e demora a evoluir no Brasil.

Manifestação a favor da descriminalização do aborto, no Rio de Janeiro, em 11 de novembro de 2015.
Manifestação a favor da descriminalização do aborto, no Rio de Janeiro, em 11 de novembro de 2015. CHRISTOPHE SIMON / AFP
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“Não é direito de ninguém matar um inocente. Se não quer ter filhos, não os faça”, diz um internauta na publicação sobre a audiência pública na página do STF no Facebook. “Mulheres, apenas fechem as pernas”, diz uma usuária em um post da revista Marie Claire Brasil sobre o aborto. Nas redes sociais, dezenas de memes circulam comparando a vida de fetos aos de animais abatidos em touradas ou informações sobre falsas pesquisas. Uma delas diz que, se a interrupção da gravidez for legalizada, 90% dos bebês serão abortados e a população brasileira será brevemente extinta.

O debate no Brasil sobre uma questão que na França é considerada intrínseca à liberdade pessoal e à saúde da mulher intriga a imprensa francesa. A revista Marianne avalia a discussão como “crucial”, em um momento em que “o Brasil teme um endurecimento contra o aborto com uma proibição para qualquer caso”. No entanto, a matéria lembra que a possibilidade de descriminalização do aborto no país é praticamente nula, com a oposição de 64% dos brasileiros, influenciados pelo domínio da igreja católica ou pela ascensão dos movimentos evangélicos.

Já o jornal Le Figaro lembra que, atualmente no Brasil, o aborto é autorizado apenas em gravidez ocorrida devido a estupros, que comprometa a vida da mãe ou em casos de anencefalia. “Fora desses casos, a mulher que recorre à interrupção voluntária da gestação corre o risco de ser condenada a três anos de prisão”, destaca.

Para o jornal Le Monde, a realidade do aborto no Brasil “é alarmante”. “Entre 500 mil e um milhão de interrupções de gravidez acontecem a cada ano na ilegalidade, 250 mil mulheres são hospitalizadas devido a complicações e mais de 200 morrem praticando o aborto a cada ano”, lembra o diário.

Na França, a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) - foi legalizada em 1975 e vale para todos os casos. A líder da causa, Simone Veil, é uma das personalidades modernas mais admiradas pelos franceses. Falecida em 2017, seus restos mortais foram levados neste ano ao Panteão, onde repousam dezenas das mais importantes figuras da História do país.

Debate anacrônico

Por que no Brasil, país ocidental, maior economia da América Latina, o debate acontece tão tarde e é crivado de preconceitos e desinformação? Para a advogada Carla Vitória, integrante da Sempreviva Organização Feminista, o conservadorismo religioso é um grande responsável pela inflexibilidade da boa parte da população sobre a questão, “que é uma das identidades do Brasil” e que, segundo a militante, vem avançando nos últimos anos.

“Existem diversos projetos de lei, defendidos por figuras políticas importantes no Congresso Nacional que visam restringir o aborto em casos em que ele é legal hoje - como o Estatuto do Nascituro e a ‘Bolsa Estupro’ - para evitar que uma mulher interrompa uma gravidez que aconteceu porque ela foi violentada”, ressalta Carla Vitória.

Outra razão apontada pela advogada é a questão econômica. “Se pegarmos o mapa do mundo, quase todos os países que chamamos de ‘sul político’ criminalizam o aborto; na América Latina, as únicas exceções são Cuba e Uruguai. Já no ‘norte político’, a situação se inverte. O controle da maternidade diz muito sobre a imposição de que as mulheres tenham mais filhos e há toda uma questão econômica atrelada a isso”, ressalta.

Heloisa Righetto é mestranda de Estudos de Gênero da Universidade de Goldmisths, em Londres, e co-fundadora da plataforma Conexão Feminista. Segundo ela, o conservadorismo da sociedade brasileira, aliado a um imobilismo, também impede que o debate sobre a questão evolua. “Muitos ativistas insistem que o aborto, se for legalizado, será opcional. Mas as pessoas que são contra já sabem disso. Elas simplesmente acham que interromper a gravidez é imoral e têm medo de confrontar essa ideia, porque sempre fomos ensinados que abortar é errado e elas não querem lidar com esse conflito”, avalia.

O machismo da sociedade brasileira também emperra a evolução das discussões sobre uma prática que, mesmo sendo ilegal, é realizada por uma a cada cinco mulheres até o final da vida reprodutiva, aos 40 anos, segundo estudo de 2016 do Anis Instituto de Bioética.

“Há a ideia de que a principal função das mulheres na sociedade é a reprodução, além da culpabilização delas por exercerem sua sexualidade livremente. A coisa mais comum nos argumentos contra a legalização do aborto é que se a mulher teve uma relação sexual consentida e engravidou, ela tem que assumir as consequências. Como se a maternidade fosse um castigo por essa mulher ter tido uma relação sexual”, diz Carla Vitória.

A militante lembra que a maior parte dos defensores da manutenção da criminalização do aborto no STF foram homens. “Aqui no Brasil temos uma população de 52% de mulheres e apenas 9% delas estão no Congresso Nacional. Ou seja, os representantes políticos da sociedade são homens, da classe média, brancos. Tudo isso interfere não apenas no discurso contra a legalização do aborto, mas no direcionamento das pesquisas sobre quem são as mulheres que abortam e quais são as condições de vida delas. Isso é investigado quando há mulheres na ciência e em espaços de poder”, salienta.

Um machismo que não deixa de atingir e ser difundido pelas próprias mulheres. Há alguns meses, a edição brasileira da revista Marie Claire vem publicando uma série de reportagens defendendo a descriminalização do aborto no Brasil. Em suas postagens, leitoras se manifestam criticando de forma controversa as próprias mulheres que interromperam ilegalmente suas gestações. “O triste é saber que mulheres querem ‘essa liberdade’ para viver na libertinagem”, diz uma internauta em uma das publicações da revista no Instagram.

Para Heloisa Righetto, essas mulheres também são vítimas da própria opressão machista que vivem diariamente. “Elas perpetuam algo que para elas é normal. É uma espécie de Síndrome de Estocolmo. Conseguir identificar e se separar daqueles que as oprimem é difícil e doloroso, porque são os homens das vidas delas que fazem parte disso. Desta forma, é perigoso taxar as mulheres como machistas porque, com isso, cria-se mais um preconceito contra elas”, avalia.

Evolução das mentalidades

Apesar da lentidão para o avanço das consciências em relação aos direitos das mulheres no Brasil, o debate serve para, ao menos, sensibilizar a população sobre a questão, avaliam as duas ativistas entrevistadas pela RFI.

“É extremamente necessário discutir o aborto no Brasil. Ele é uma realidade, é um fato social. Independentemente de as pessoas serem contra ou a favor, isso acontece, principalmente entre as mulheres pobres e negras que têm que recorrer a clínicas clandestinas e a médicos que colocam em risco a saúde, integridade física e a vida delas”, salienta Carla Vitória.

“Eu estou otimista. Falar é bom porque faz os pensamentos evoluírem”, afirma Heloisa Righetto. A co-fundadora do Conexão Feminista diz que se surpreendeu com mulheres religiosas defendendo a descriminalização do aborto no STF. “Vejo esse debate como muito positivo. Não lembro de uma discussão dessa dimensão ter acontecido no Brasil até hoje desta forma, tomando conta das redes e mobilizando tantas pessoas”, conclui.

Não há prazo para a ministra Rosa Weber, sorteada para ser a relatora da ação, apresentar seu parecer sobre a audiência pública. O relatório do debate será encaminhado por ela aos outros ministros do STF, e não tem data para votação. A decisão dos magistrados não tem poder de decisão, mas pode ser um primeiro passo em direção de uma futura descriminalização.

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