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Eleições/Brasil

Ameaça de golpe de Estado é o que diferencia Bolsonaro de Le Pen, diz filósofo Michel Onfray

A RFI entrevistou com exclusividade o filósofo francês Michel Onfray, no contexto das eleições brasileiras de 2018. Filósofo respeitado, Onfray é uma personalidade polêmica na França, onde seus livros são recebidos com expectativa, traduzidos na sequência para diversos idiomas. No Brasil, publicou uma dezena deles, como "A Potência de Existir" e "A Arte de Ter Prazer", ambos pela editora Martins Fontes. Em 2015, ele chocou parte da sociedade francesa ao afirmar que o país “criminaliza até o menor questionamento sobre migrantes”. Acusado de “fazer o jogo da Frente Nacional”, o partido de extrema direita da França, ele afirmou à RFI que não considera Marine Le Pen como tal, a partir do momento em que ela “nunca questionou sua derrota nas eleições”, como no caso “do candidato brasileiro Jair Bolsonaro”, que disse não aceitar o resultado das urnas caso não fosse eleito. Para Onfray, a extrema direita é “acima de tudo, golpista”. Presença constante em programas de televisão na França, ele criou em 2002 a Universidade Popular de Caen, onde ministrava conferências abertas para públicos de centenas de pessoas. A escola foi fechada no mês passado, mas Onfray continua a ministrar palestras para “lutar contra as ideias da Frente Nacional”. “Eles são mais numerosos e mais perigosos”, declarou. Além de comentar as eleições brasileiras, Onfray também oferece uma visão geopolítica global de fenômenos políticos de massa, como o populismo.

O filósofo francês Michel Onfray.
O filósofo francês Michel Onfray. Divulgação
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RFI: Você, enquanto filósofo e observador internacional, se surpreendeu com a atual configuração política brasileira?

Michel Onfray: Não fiquei surpreso. Houve um grande momento geopolítico, com a queda do Muro do Berlim e o desaparecimento da União Soviética. Antes havia o capitalismo em bloco, de um lado, e, do outro, uma hipótese comunista e anticapitalista. Quando o império soviético se dissolve, entramos em outra configuração. O liberalismo não tinha mais nada diante dele, então, obviamente, foi exacerbado. Vimos então aparecer um inimigo, porque se precisava de um. Criamos então um terrorismo internacional formidável. Mas isso não foi suficiente. Esse descontentamento das pessoas que sofreram a violência do capitalismo liberal impulsiona aqueles que chamamos hoje de “populistas”. São pessoas que falam da violência, que não existe mais segurança, que é a lei do dinheiro que manda, então há uma cristalização de descontentamentos. Mas, quando falamos de populismo, quando essa gente [populistas] deixa de ser oposição e chega ao poder, vemos bem que não fazem exatamente aquilo que prometeram.

RFI: Então o fortalecimento da candidatura de extrema direita no Brasil seria um desenvolvimento dos acontecimentos geopolíticos globais dos últimos tempos?

Michel Onfray: Completamente. É planetário. Veja Trump nos Estados Unidos, ou a chegada deste tipo de discurso em alguns países da Europa, como a Hungria, Polônia ou Inglaterra, ou a intensificação destes grupos na Alemanha. O que chamamos de populismo ou extrema direita é a única força de oposição atual ao capitalismo desenfreado.

RFI: Podemos dizer que esse capitalismo desenfreado tenha relação no Brasil com o fortalecimento do discurso populista?

Michel Onfray: Não conheço os detalhes da situação brasileira, e não conheço profundamente esse candidato de extrema direita. Pelo que vi, efetivamente, é um personagem bastante antipático, grosseiro, vulgar, sexista. Que disse a uma parlamentar de esquerda que ela era ‘muito feia para ser estuprada’. Isso é suficiente para se desconsiderar um personagem, do meu ponto de vista. Mas são essas as propostas de alternância política quando a esquerda não é mais capaz de se construir ou de se reconstruir. Não existe mais esquerda. Veja: na França, o partido socialista não existe mais, temos um [Jean-Luc] Mélenchon [candidato à eleição presidencial francesa pela esquerda radical], uma voz que, em alguns aspectos, nos lembra o extremismo de direita, não temos uma esquerda alternativa crível. É claro que as coisas que o candidato Bolsonaro diz são inadmissíveis. Não se pode dizer “eu prefiro um filho morto a um filho gay”. Mas você sabe muito bem que Trump foi eleito graças a esse tipo de vulgaridades. São estratégias midiáticas que permitem contornar a imprensa oficial e de dirigir diretamente a um eleitorado de base. É a grande demagogia da democracia, dizer às pessoas o que elas querem ouvir, apenas para que elas nos levem ao poder. É uma aposta muito arriscada. Se ele chegar ao poder, ninguém poderá defender sua política sexista, falocrata, misógina, homofóbica.

RFI: Algumas pesquisas de opinião e reportagens no Brasil mostram um claro desejo das pessoas de uma “mudança”, de “algo novo”. É um fenômeno global na sua opinião?

Michel Onfray: Temos isso aqui na França com o chamado “degagismo” [do verbo “dégager”, em francês, “cair fora”, “liberar”], ou seja, é preciso tirar as pessoas que estão no poder há muito tempo, porque nós nos dissemos que era necessário uma nova geração, novos rostos, novos nomes, e com tudo isso uma nova política. Mas, na verdade, o sistema é muito mais forte do que os indivíduos. Vimos isso com o Macron, que chegou ao poder com essa lógica. Estamos cheios [na França] de pessoas que fazem política há mais de 40 anos, dos velhos políticos, é necessário alguém novo, mas quando alguém novo chega ao poder, vemos que ele faz uma velha política, porque, globalmente, o capitalismo tem suas engrenagens, não são as pessoas que fazem a História, mas a História que faz as pessoas.

RFI: Mas vocês conseguiram barrar a chegada ao poder de Le Pen na França.

Michel Onfray: Há muitos anos que eu digo que o liberalismo da Europa de Maastricht [o tratado de Maastricht, em 1992, estabeleceu os fundamentos da atual União Europeia] é potencialmente explosivo. Não podemos maltratar os pobres durante anos, enriquecer ainda mais os ricos, ser insolentes com o dinheiro, dizer às pessoas que se elas não se enriquecem é porque não trabalham direito, que são preguiçosos, que são gauleses que reclamam o tempo todo, como disse o presidente da República [na França]. Não podemos defender essa política, de um lado, e de outro, esperar que o povo diga “obrigado, nós o agradecemos por nos desprezar, por nos insultar, por nos tomar nosso dinheiro”. As pessoas não votam por acaso em candidatos populistas. É preciso raciocinar segundo a filosofia política e ver causas e consequências. As pessoas votam em candidatos populistas porque nós as humilhamos durante anos. Hitler chegou ao poder simplesmente porque propunha devolver a dignidade a um povo humilhado pelo Tratado de Versalhes. Todo mundo diz que isso não deve se reproduzir, mas todos fazem tudo para que isso se reproduza. Ao invés de combater o populismo, deve-se combater as redes que conduzem ao populismo. As redes que conduzem ao populismo são os banqueiros, o sistema financeiro, os capitalistas que dão as ordens e que são fortes com os fracos, e fracos com os fortes.

RFI: Quais são as diferenças entre a extrema direita francesa e a brasileira?

Michel Onfray: A extrema direita, para mim, tem uma tradição histórica, com grandes nomes. Ela é antiparlamentar, ela não se apresenta em eleições, ela usa a violência na rua, ela é antidemocrática. Na maior parte do tempo, ela é claramente antissemita, contra a franco-maçonaria. E você tem na França nomes como Céline [conhecido escritor antissemita], existem pensadores de extrema direita. E quando você diz que na França existe uma extrema direita, ou uma direita, que perde as eleições e que diz que voltará nas próximas, isso para mim não é extrema direita, porque a extrema direita é de natureza golpista.

RFI: No caso do candidato Jair Bolsonaro, que afirmou publicamente que não aceitará o resultado das eleições em caso de derrota...

Michel Onfray: Aí, efetivamente, é uma ameaça de golpe de Estado. É verdadeiramente uma extrema direita. Não é exatamente a mesma coisa que Marine Le Pen que, derrotada nas eleições, jamais disse que a derrota não havia acontecido. Le Pen não contestou a eleição do presidente da República [Emmanuel Macron]. No Brasil temos uma sociedade extremamente desigual, com pessoas extremamente pobres ao lado de outras extremamente ricas. Nas diversas vezes que fui ao Brasil, vi favelas que são vizinhas de mansões de bilionários. É extravagante. Me disseram uma vez, que o carro onde eu estava era blindado, para que não fôssemos roubados ou sequestrados no sinal. Num país onde o Estado de Direito é destruído, isso é muito problemático. Na França, se alguém mata uma pessoa num estacionamento para roubar seu carro, isso nunca seria tratado de forma banal. Esse tipo de desigualdade gera uma situação explosiva. Os marxistas achavam que se tratava de uma situação revolucionária, a seu favor, mas se trata de uma situação revolucionária sim, mas nem sempre a seu favor. Como não parece haver respostas marxistas críveis, as pessoas começam a considerar as respostas populistas críveis. É claro que as pessoas estão enganadas, mas não podemos impedí-las de ter esperanças neste sentido.

RFI: Como, na sua opinião, é possível continuar a fazer uma política mais saudável, como voltar a ter desejo de política no Brasil?

Michel Onfray: Olha, aí eu vou precisar de umas três horas para explicar (risos). Eu defendo uma esquerda libertária, comunitária, que não passa por partidos, mas pelos cidadãos. Eu acho que é necessário acabar definitivamente com os partidos políticos oficiais, com os candidatos oficiais, com o discurso oficial, com a tradição jacobina [menção ao poder centralizado dos jacobinos, na Revolução Francesa], que tem tanto a ver com o Brasil. É preciso que os cidadãos tomem em suas mãos seu destino. O poder por aqueles sobre quem ele deve ser exercido, e não por pretensos mandatários dos eleitores. Não defendo essa democracia indireta, defendida pelos partidos ou pelos parlamentares, prefiro a democracia direta, que permitirá a fabricação de “comunas”, como diziam os soviéticos, ou de “conselhos”, como diziam os húngaros, que permitiriam às pessoas de tomar decisões onde elas se encontram, numa região, numa país, mas também nos prédios, nas escolas, nas usinas, nos hospitais, que cada um possa decidir o seu destino e que parem de acreditar que existem homens providenciais capazes de resolver todos os problemas. A solução à esquerda que eu defendo é aquela onde não existe um “homem certo”, mas que o homem certo é o cidadão que toma de volta o poder em suas mãos.

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