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Violência no Brasil é fruto do aparato repressivo herdado da ditadura, diz filósofo Edson Teles

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A biografia do filósofo e professor universitário, Edson Teles, especialista em autoritarismo político, reúne vivência e teoria. Ele foi o preso político mais jovem da história do Brasil e o combate à ditadura militar brasileira norteia sua vida. Nessa entrevista a RFI, ele fala sobre os riscos à democracia brasileira e diz que o aparato repressivo, que na ditadura visava os militantes políticos, permanece e “na democracia passou a agir contra as pessoas negras, pobres e periféricas das grandes cidades”.

O filósofo e professor Edson Teles
O filósofo e professor Edson Teles RFI
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O professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) é diretor do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense, que, entre outros projetos, tenta identificar desaparecidos políticos da ditadura de 1964 entre as ossadas encontradas na Vala Clandestina de Perus. Ele também coordena o Núcleo de Filosofia política da Unifesp. Militante da Comissão de Familiares de mortos e desaparecidos políticos, o filósofo tem vários livros publicados, entre eles “O que resta da ditadura, a exceção brasileira” (2010, Boitempo), que co-organizou com Vladimir Safatle.

Edson Teles foi preso aos 4 anos de idade, em 1972, juntamente com a irmã de 5 anos, e os pais, Cesar e Amélia Almeida Teles, ex-militantes do PCdoB. Na cadeia, viu os pais torturados. A família Teles foi até hoje a única que venceu um processo contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o militar a quem Jair Bolsonaro dedicou seu voto no impeachment de Dilma Rousseff. Em 2008, Ustra foi condenado e declarado publicamente pelo Justiça como “torturador”.

Este processo e a condenação do Brasil na OEA (Organização dos Estados Americanos) por não apurar os crimes da ditatura, foram os dois eventos que levaram à mobilização em torno da criação da Comissão Nacional da Verdade. Edson Teles faz uma relação entre as conclusões da Comissão e o impeachment de Dilma: “Dentro desse processo da transição e depois na Comissão da Verdade, se produziu um ressentimento na extrema direita. Ali começa a se articular um discurso contra a democracia brasileira. Foi a primeira vez, durante a Comissão da Verdade que as pessoas foram às ruas pedir a intervenção militar. Então há uma produção negativa, uma reação à CNV que vai alimentar o processo do impeachment.”

Transição ambígua

Para Edson Teles, a transição da ditadura para a democracia no Brasil foi ambígua. Em alguns aspectos ela promoveu uma ruptura, mas em outros foi marcada pela continuidade, principalmente na política de segurança pública. “Durante a construção do estado de direito o Brasil, o país não se desfez de seu aparato repressivo. Ele optou por uma saída que foi chamada na época de reforma das instituições e humanização do procedimento. Isto é, pegar a polícia repressiva, modernizá-la, dar curso de direitos humanos, (pensando que) isso diminuiria o lugar repressivo dela.”

O aparato repressivo, que na ditadura visava os militantes políticos, na democracia passou a agir contra “as pessoas negras, pobres e periféricas das grandes cidades”. Resultado, “nós chegamos a um quadro hoje no Brasil em que temos 65 mil homicídios por ano. Desses, mais de 65% são negros”, denuncia Teles. O professor forjou um conceito forte para falar dessas mortes que ele chama de “vidas descartáveis!”

‘São vidas descartáveis porque no processo de construção de democracia houve uma desqualificação deste ser humano em favor da qualificação e da politização de uma outra categoria que tinha acesso à cidadania. E dentro de uma tradição da história brasileira, podemos chamar de uma matriz racista, de um racismo estruturado e de uma sociedade patriarcalista.”

Ainda existe democracia no Brasil?

Na França, onde parte da opinião pública está muito preocupada com os riscos a democracia brasileira, Edson Teles fez várias palestras sobre o tema. Ele diz que no Brasil, dependendo da pessoa, há quem diga que “antes mesmo do Bolsonaro já não existia mais democracia porque já havia um processo de desmonte”.

O professor universitário ressalta, no entanto, que algumas instituições, como o Judiciário e o Legislativo, ainda funcionam com uma certa autonomia. “Mas em termos das relações políticas e sociais eu diria que a democracia já está em uma situação limite para deixar de existir”, alerta.

Perspectivas

Apesar da situação limite, o filósofo elogia a capacidade de resistência de coletivos negros e feministas que surgiram no Brasil nos últimos anos. “Eu acho que a grande novidade no Brasil não é o governo Bolsonaro. Ele é um pouco do mesmo, do velho patriarcalismo e racismo brasileiro com suas ditaduras históricas. A grande novidade é o surgimento de uma nova forma de ação política, mas autônoma menos dependente dos lugares tradicionais. Eu me refiro, por exemplo, a explosão de coletivos negros, coletivos feministas, LGBT, feministas negros, criação de espaços culturais, cultura de resistência, narrativas sobre formas de resistência da sociedade brasileira. Diria até que a articulação do centro, da direita e da estrema direita em torno da candidatura do Bolsonaro é uma reação a essa grande movimentação que tem acontecido no Brasil”.

Esses coletivos sabem que são alvo do novo governo, segundo Teles. O filósofo ressalta que, ao contrário do que muitos pensam, “Bolsonaro não é estúpido nem burro, e sim muito estratégico”. Por exemplo, em relação ao acesso às universidades que foi uma das grandes conquistas nos governos de esquerda, Teles salienta que o presidente “não está atacando as cotas, ele está destruindo a universidade. (...) e quem vai ser o maior prejudicado? Vão ser as pessoas negras cujas famílias não têm como sustentar. E vai ocorrer um embranquecimento das universidades.”

Para o professor universitário, o atual governo não está numa situação instável, e sim “numa situação fortalecida, muito consolidada enquanto proposta de desmonte do que a gente criou na democracia.”

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