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Da janela de um arranha-céu de Porto Alegre, Rodrigo John filma a “virada histórica” do Brasil de 2013 a 2018

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O filme “Mirante”, que concorre ao prêmio de melhor documentário no Festival Biarritz América Latina, na França, relata de maneira original a transformação das relações humanas a partir do processo de uma mudança política radical no Brasil. O cineasta gaúcho Rodrigo John filmou durante anos, da janela de seu apartamento em Porto Alegre, a dinâmica de uma cidade afetada pela crise política do país.   

O roteirista Rodrigo John.
O roteirista Rodrigo John. M.E. Alencar/ RFI
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Quando Rodrigo John sofreu o rompimento do ligamento de seu joelho em 2004, ele não sabia que muitos anos depois estaria percorrendo festivais no mundo inteiro para exibir o seu documentário “Mirante”. A princípio, ele começou a filmar de sua janela “como uma brincadeira” as cenas cotidianas dos habitantes da cidade, já que por ordens médicas ele teria que ficar um ano de repouso.

A “brincadeira” virou uma obsessão e bem mais tarde um projeto de documentário. Em entrevista à RFI, Rodrigo explica que tudo partiu de sua reflexão de “como as relações de poder e de afeto aparecem mesmo à distância”. De sua câmera, colocada de maneira permanente sobre um tripé em frente à janela de seu apartamento no 17°andar, ele começou a registrar os pequenos gestos das pessoas, a forma como os corpos vão ocupando o espaço e a relação dos mesmos com a arquitetura que os rodeia.

Em 2013, com as primeiras manifestações contra o governo da ex-presidente Dilma Rousseff, começou, segundo ele, a “virada histórica” no pais. “A partir daí aqueles elementos que estavam esparsos, dispersos na paisagem, começaram a ganhar outro sentido. E isso começou afetando a dinâmica da cidade, que foi se tornando mais violenta, as relações foram se tornando mais difíceis, os diálogos mais precários”. Como isso era perceptível de sua janela, à distância, ele começou então a pensar em um documentário.

Janela Indiscreta

Rodrigo não esconde que seu filme tem algo de “uma versão documental de Janela Indiscreta” (o célebre filme de Alfred Hitchcock feito em 1954). “Só que o tipo de crime que eu termino flagrando foi outro”- brinca ele.

O ponto de partida foi reunir um caleidoscópio de pequenas narrativas: pessoas em suas tarefas cotidianas, seus gestos dentro dos apartamentos, nas varandas ou a atitude dos trabalhadores nos telhados ou nos guindastes refletidas nas janelas. Mas o documentarista sempre manteve a preocupação de nunca as identificar. Até o final, ele evitou construir um roteiro, pois ele queria que as imagens falassem por si mesmas.

Belas imagens urbanas com o Rio Guaíba como pano de fundo e uma sonoplastia de impacto contribuem para a dramaticidade desse documentário. Os anônimos retratados em seu cotidiano viram personagens familiares, como um “sem teto” filmado à distância durante anos a fio.

Rodrigo ressalta que esse “sem teto” às vezes parecia saber que estava sendo filmado, pois “entrava em cena” com estratégias surpreendentes. Cada vez que ele praticava pequenos furtos, ele se vestia com o uniforme de lixeiro. “Uma espécie de capa de invisibilidade, pois ele sabia que ficava protegido por nosso preconceito, por nossa incapacidade de ver as pessoas que estão trabalhando na cidade” explica o cineasta.

Tensão crescente

A medida em que o movimento de protesto contra o governo Dilma cresce e se alastra pelo país, as passeatas em Porto Alegre aparecem de maneira sutil nos pedaços de ruas que podem ser vistas entre os arranha-céus, e a dramaticidade do documentário aumenta de maneira expressiva.

É como se a leveza da cidade cedesse o lugar à tensão quando o impeachment da presidente se aproximava. A perda de uma certa inconsciência ou inocência toma conta das imagens do filme. Rodrigo explica que, no início, as imagens parecem idílicas, a cidade parece que funciona, a natureza é mais presente, as relações de afeto são mais visíveis. “As imagens do começo do filme refletem efetivamente uma certa ingenuidade que tivemos em relação à nossa democracia, de julgá-la mais forte do que ela era”- observa ele.

“Mirante” é um filme que começa de maneira contemplativa e “exige um pouco do espectador” diz Rodrigo, pois mesmo se as imagens narram um período histórico, de 2013 a 2018, elas não têm uma função didática. “Elas não estão reconstruindo os fatos e explicando nada”- ressalta.

Segundo o cineasta, o personagem central é “como um misantropo que não quer sair de seu apartamento, mas o lado de fora termina por invadir o lado e dentro e ele não tem mais como fugir”. O documentário trata também de como as pessoas tentam levar as suas vidas, apesar de decisões que estão acima delas. “E como elas continuam tentando seguir em uma normalidade que se tornou impossível” – conclui ele.

“Mirante” compete ao prêmio de melhor documentário do Festival Biarritz América Latina, que termina no próximo dia 6 de outubro.

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