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Ernesto Neto: "Existe um problema espiritual no Brasil"

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Aos 53 anos, o carioca Ernesto Neto é um dos artistas plásticos de sua geração de maior projeção internacional. Isso fica evidente no espaço reservado para suas obras na 14ª Bienal de Lyon, que programou mais de 100 artistas do mundo todo. O artista conversou com exclusividade com a RFI Brasil, direto do evento.

O artista plástico Ernesto Neto, cujas obras são destaque na Bienal de Lyon de 2017.
O artista plástico Ernesto Neto, cujas obras são destaque na Bienal de Lyon de 2017. © Blaise Adilon
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* Veja galeria de imagens com o trabalho do artista no final da entrevista

Sempre testando a resistência de suas matérias orgânicas e fluidas, o artista Ernesto Neto apresenta nessa edição da Bienal, intitulada “Mundos Flutuantes”, instalações que “dialogam” com esculturas do francês Jean Arp e com um magnífico mobile do americano Alexander Calder. Durante entrevista exclusiva à RFI em Lyon, Ernesto Neto fala sobre seu processo de criação, analisa as diversas influências dos modernistas em seu trabalho tão contemporâneo, mas insiste principalmente em sua preocupação em relação ao meio ambiente e à preservação dos povos indígenas. E segundo ele, o que faz falta mesmo hoje no mundo e no Brasil é uma maior espiritualidade.

RFI: Ernesto Neto, você apresenta na 14ª Bienal de Lyon, uma grande instalação chamada “Two Columns for One Bubble Light” de 2007, em torno da qual gravitam outras três instalações. Trata-se de mais um chamado “penetrável”, uma obra que convida o público a entrar dentro dela. Seus trabalhos são sempre sensoriais, táteis e você parece estar sempre testando a resistência de matérias como algodão, lycra, poliamida. Por quê?

Obra do artista Ernesto Neto na Bienal de Lyon.
Obra do artista Ernesto Neto na Bienal de Lyon. © Blaise Adilon

Ernesto Neto: Nem sempre eles são táteis... Às vezes eles não são feitos para serem tocados, mas eles estão sempre se tocando, porque o relacionamento de interatividade implica neles estarem se tocando um com o outro, um dançando com o outro, um conversando com o outro, um tensionando o outro. Então, desse relacionamento, nasce a obra de arte. Esses trabalhos vivem nesse estado de balanço, de equilíbrio, como se eles estivessem acontecendo sempre naquele momento.

RFI: Essas instalações estabelecem um diálogo, proposto pela curadora da Bienal, Emma Lavigne, com obras de grandes artistas como Jean Arp, Alexandre Calder ou Lucio Fontana. Parece que a identidade entre essas obras é perfeita, o que está fascinando os visitantes da Bienal.

EN: Esses são grandes mestres. O Calder foi muito importante para mim quando comecei a trabalhar. Eu entrei num curso do Roberto Moriconi, chamado “Pesquisando Calder”, na Escola do Museu de Arte Moderna. Então, ele foi muito importante para mim. O Arp também foi importante mas não na mesma dimensão que o Calder. O Fontana também. Mas na verdade, quem eu considero o meu avô é o Brancusi (escultor romeno, figura emblemática do modernismo, que viveu e morreu em Paris de 1904 até a sua morte, em 1957) e a minha avó é a Lygia Clark. Ambos e todos esses mestres estão dentro do meu trabalho, do meu coração, do meu amor mesmo. Mas eu não montei essa instalação, foi o meu assistente que a montou. E quem desenhou essa sala foi a Emma Lavigne, a curadora, que me propôs isso e eu achei muito interessante. Foi como se eu tivesse feito uma composição e ela estivesse regendo a orquestra. Essa instalação “Two Columns for One Bubble Light” é um lugar para você sonhar, para entrar, tirar os sapatos, deitar, dormir, se isolar do mundo. É como entrar dentro de uma pintura, de um sonho, de um espaço onírico, de esperança, de comunhão, de espiritualidade.

RFI: Na exposição vemos estampada a seguinte frase do Jean Arp: “Eu nasci numa nuvem”. E você Ernesto, você também nasceu numa nuvem?

EN: Poxa, nunca tinha pensado nisso, mas deve ser lindo nascer numa nuvem. Estou me sentindo numa nuvem agora! Gratidão ao Arp por essa frase maravilhosa. Ele era um revolucionário, que trouxe esse universo incrível, orgânico, em um momento tão diferente da cultura.

RFI: O teu trabalho é muito orgânico, não é?

EN: Sim, eu estou nesse mundo orgânico mesmo, acredito na natureza, na vida, na força vital de estar vivo, nesse universo que temos hoje da biologia, do conhecimento que temos do corpo, é uma nova paisagem que existe dentro de nós. Nós somos um habitat. Parece que são três trilhões de células com nosso DNA e um quatrilhão de células com o DNA forasteiro, que não é nosso, de bactérias. Então nós somos mais feitos de DNA estrangeiro, do que de nós mesmos. Isso é curioso no mundo que vivemos hoje.

RFI: Você levou para a Bienal de Veneza recentemente um grupo de índios da tribo Huni kuin, do Acre, para participar de uma performance dentro de uma tenda de crochê. Isso foi um grito de alerta para a situação dos índios no Brasil?

EN: Não necessariamente. E também não era uma performance. Foi um encontro maravilhoso – continua sendo aliás – que ocorreu há quatro anos e que me envolveu com a espiritualidade poderosa que eles têm. A conexão deles com a natureza é algo quase inacessível para nós que somos massacrados pela cultura da lógica, das polaridades, da dialética. Então a ideia é de vivenciar esse universo majestoso, maravilhoso, de tanta sabedoria e que está lá longe e sofre dos preconceitos entre a sociedade branca e a sociedade indígena. Foi a segunda ou terceira participação que eles tiveram no meu trabalho, trazendo uma transformação que eu comecei a sofrer quando os conheci, porque eu entrei numa dimensão espiritual que eu tateava com a própria arte, mas eu não tinha a dimensão do poder, da magia que tinha esse lugar e da necessidade urgente que a gente tem de espiritualidade. Eu acho que a transformação que nós precisamos no nosso planeta é espiritual. E eu acho que essa espiritualidade que a gente tem no Brasil, que é extremamente profunda, é muito importante. O Brasil só vai se encontrar quando ele aprender a conviver e a consagrar essa força indígena, assim como a força espiritual africana. Essa perseguição aos terreiros de Umbanda e Candomblé pela Igreja Evangélica no Rio de Janeiro, é uma grossura, uma estupidez porque essa força espiritual existe dentro da gente. É terrível essa matança indígena, com a destruição de florestas. Cada floresta que você destrói, você acaba não só com o habitat dos índios, mas com a fauna, com a flora. É uma violência gigantesca. Mas acima de tudo, o que eu quero dizer, é que existe um problema espiritual no Brasil. Imagina um presidente que, para pagar a sua conta, tem que vender a Amazônia. É um absurdo sem limites. E além disso, o que a gente tem a aprender com essa sabedoria indígena, convivendo com ela! É parte da gente. A maioria dos brasileiros tem sangue indígena dentro de si também. A gente está se auto matando, é uma autofagia. Está se comendo a própria carne. Então, trazer essa turma da tribo Huni kuin, representando os povos indígenas de alguma forma, é uma maneira de dizer: essa turma existe, ela é muito legal e a gente tem muito a aprender com eles.

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