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Teatro/Brasil

Brasil, país da censura? Artistas brasileiros que produzem na França comentam cancelamentos de peças

Os relatos de artistas brasileiros sobre uma espécie de “censura velada” a espetáculos e manifestações artísticas se multiplicaram nos últimos dois meses. Um protocolo de cancelamentos de peças parece se repetir, sempre às vésperas de estreias, pedindo “mais informações”. A RFI ouviu a diretora Christiane Jatahy [O agora que demora, que estreia em Paris em 1° de novembro], o ator e diretor Arthur Luanda Ribeiro [Gritos, cancelado pela Caixa Cultural de Brasília], o diretor Luiz Felipe Reis [Na boca do vulcão - Princípio do fim, adiado pelo centro Cultural Banco do Brasil de Belo Horizonte], além de José-Manuel Gonçalvès, diretor do Centquatre, um dos maiores centros de de artes performativas e visuais de Paris, para refletir sobre a inquietude que ronda a classe artística brasileira, a partir do olhar de quem encena, produz ou programa teatro na França.

O ator e diretor Arthur Luanda Ribeiro encarna uma transexual no espetáculo "Gritos", que teve apresentação cancelada pela Caixa Cultural de Brasília.
O ator e diretor Arthur Luanda Ribeiro encarna uma transexual no espetáculo "Gritos", que teve apresentação cancelada pela Caixa Cultural de Brasília. Divulgação
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“Estou mais que preocupada, estou horrorizada”, diz a diretora Christiane Jatahy, cujo espetáculo O Agora que Demora estreou em julho como um dos destaques da 73° edição do maior festival de teatro da França, em Avignon, uma coprodução do prestigioso Odéon-Théâtre de l’Europe. Artista que faz parte do primeiro time no panteão das artes cênicas europeias, Jatahy não economiza palavras para descrever o que sente em relação aos recentes cancelamentos – em grande parte não explicados pelos contratadores – de espetáculos e palestras com temas que tocam universos como o LGBT+, o feminismo ou a Amazônia. “É um momento obscurantista, porque nos é tirado o direito, tanto como artistas quanto como espectadores, de escolher as nossas obras, do que queremos fazer ou ver”, diz.

“Isso para mim se aproxima de uma atitude ditatorial em que definem o que é certo e o que é errado para as pessoas poderem assistir”, argumenta Jatahy. “É censura. Eu acho muito preocupante e desrespeitoso, acho que os artistas vêm sendo calados de várias maneiras, assim como os intelectuais, qualquer pessoa que tenha uma opinião que seja contrária ao que o governo prega”, denuncia. “Enquanto artistas temos a obrigação de assumir um lugar crítico sobre o que está acontecendo em qualquer momento”, diz a diretora. “O lugar do artista é um lugar da política, de um olhar de reflexão sobre as coisas e esse é o lugar do teatro também, em qualquer sociedade. Nesse momento em que a gente está vivendo, a palavra resistência se tornou fundamental”, analisa.

Censura “explícita, mas não explicitada”

Christiane Jatahy durante o Festival de Avignon, em 2019.
Christiane Jatahy durante o Festival de Avignon, em 2019. Siegfried Forster / RFI

Para a diretora, a censura é “explícita, mas não explicitada”. “Não é assumido como uma censura, mas como uma ideia curatorial, mas que assume uma ideia de censura porque é claramente temática. Ela não é sobre qualidade artística, é sobre tema. Tenho alguns amigos que estão sofrendo isso, como o Arthur [Ribeiro] e o André [Curti] da Cia Dos à Deux, o Pedro Kosovski do Caranguejo Overdrive [laureado com os principais prêmios do teatro nacional, como o Shell, o Cesgranrio e o APTR]. Ninguém consegue ter uma explicação clara”, diz.

É o caso do espetáculo Na boca do vulcão – Princípios do fim, da Polifônica Cia, também citada por Jatahy. Em entrevista à RFI, o diretor e um dos fundadores do grupo, radicado no Brasil, Luiz Felipe Reis, conta que recebeu um “anúncio intempestivo, a duas semanas da estreia”, de um adiamento da peça pelo Centro Cultural Banco do Brasil. “Recebemos um comunicado da gerência da unidade de Belo Horizonte, onde deveríamos estrear, informando a suspensão do processo de contratação do projeto, alegando uma justificativa técnica, de que não haveria tempo hábil para realizar todos os ritos burocráticos necessários. Nos deram outras datas, para 2020”, conta o diretor, que também assina a dramaturgia do espetáculo e que já encenou peças do francês Pascal Rambert.

A obra trata de desequilíbrios e mudanças climáticas no Brasil e no mundo, assunto evitado pelo presidente brasileiro, climatocético confesso. “Desde 2015, trabalhamos sobre o impacto da Humanidade na Terra. Desenvolvemos essa pesquisa e fomos contemplados com o edital de fomento do Centro Cultural do Banco do Brasil para projetos inéditos. O banco, enquanto patrocinador, nos ofereceu uma possibilidade de estreia em 12 de setembro”, conta Reis. “Não posso afirmar que houve ruptura de contrato, mas nossa peça, focada em questões ambientais, foi adiada na semana em que a questão do aumento das queimadas na Amazônia se transformou em uma crise diplomática internacional”, lembra o diretor. “Isso internamente nos causa um estranhamento”, confessa ele, que chegou a desembolsar cerca de R$ 10 mil para dar início ao processo de criação.

Cena do processo de criação do espetáculo "Na boca do vulcão – Princípios do fim", da Polifônica Cia.
Cena do processo de criação do espetáculo "Na boca do vulcão – Princípios do fim", da Polifônica Cia. Divulgação

José-Manuel Gonçalvès, diretor do Centquatre em Paris, conta que esta situação na França seria impensável. “Primeiramente, existe um princípio aqui. A partir do momento em que você se compromete com um espetáculo, não importa se depois você o considera bom ou ruim, a única razão que pode levar a um cancelamento do mesmo é porque os artistas se encontram doentes, por exemplo, ou se os próprios artistas decidem que é impossível do ponto de vista técnico”, afirma. “Cancelar porque tecnicamente o contratador considera que não é possível ou porque não gosta da temática é algo que nunca vi ou ouvi falar na França”, diz o programador.

“Os candidatos são escolhidos [para apresentarem um projeto cultural], a partir de suas competências técnicas e sua experiência, e não a partir de temáticas. Os projetos são escolhidos a partir de uma apreciação artística, e não porque sejam ‘aceitáveis’ do ponto de vista da comunicação ou político”, afirma. “É impensável que um Estado passe a criação artística por uma espécie de filtro, criado a partir de uma única maneira única de pensar o mundo, isso se chama ditadura”, pontua.

“Autocensura”

Gonçalvès relata que está a par “em parte” sobre o que se passa no Brasil porque trabalha regularmente com artistas brasileiros que, “semanalmente”, “nos assinalam a censura que vem sofrendo, e as dificuldades que vêm sofrendo para exercer sua profissão”. “Eles relatam uma forma de opressão invisível, mas muito eficaz e efetiva, que os deixa na expectativa”, conta. “No fundo, existe ainda algo que é ainda mais perverso do que a censura declarada, com todos esses dispositivos invisíveis. É essa maneira através da qual, psicologicamente, cria-se essa sensação, essa emoção de medo em relação ao Outro, que fabrica, no fim, um efeito de autocensura”, afirma José-Manuel Gonçalvès,

“É muito inquietante. O Brasil, ao contrário de Bolsonaro, é um país de grande criatividade”, afirma José-Manuel Gonçalvès, que capitaneia há anos a programação do Centquatre, um enorme complexo cultural no 19° distrito da capital francesa, que acolhe anualmente uma grande diversidade de espetáculos, instalações e performances vindos do mundo inteiro, inclusive do Brasil. “A criação não precisa da permissão da moral para ser ao mesmo tempo pertinente e, sobretudo, impertinente. Impertinência no sentido de contestar o poder atual. Vamos acolher artistas brasileiros que não são os ‘oficiais’ e que nos contarão outra coisa além do que deseja Bolsonaro”, afirma o diretor e programador.

Espetáculo que aborda transfobia cancelado

“Não existe censura direta”, afirma o ator e diretor Arthur Luanda Ribeiro, há mais de 20 anos nos palcos entre a França e o Brasil com a Cia Dos à Deux. “Ninguém chegou dizendo ‘vocês não podem apresentar'. O que está existindo agora é uma reestruturação dos projetos. Em nenhum momento a Caixa [Cultural] disse que não poderíamos apresentar ‘Gritos’, mas de repente eles decidiram pedir mais informações sobre a peça. Estávamos apresentando também ‘Aux Pieds de la Lettre’, era uma mostra de repertório, mas só pediam material sobre ‘Gritos’”, estranha Ribeiro, que encarna uma transexual na peça.

“Na medida em que a estreia foi se aproximando, começamos a receber e-mails pedindo sinopse, explicações, vídeos. A equipe da Caixa Cultural de Brasília foi adorável, tentou de tudo para segurar, mas sentíamos que o espetáculo estava por um fio, porque a temática da censura velada já havia estourada na imprensa brasileira”, conta o artista. “Fomos expostos a essa perseguição dentro das instituições, de censura velada”, diz Ribeiro, que não pôde apresentar “Gritos” na Caixa Cultural de Brasília.

O artista declara que não teve até hoje nenhuma explicação do organismo para o cancelamento do espetáculo em Brasília. “Nada, ninguém disse nada. Decidimos internamente redirecionar o projeto. Eles reestruturam tudo, que espetáculo fazer, com qual oficina ou palestra, redimensionaram o projeto inicial. Quando a gente soube que queriam retirar ‘Gritos’ da grade da programação e não queriam assinar o contrato, soltamos uma nota pública, o que fez com que o projeto inteiro não caísse”, conta Arthur Luanda Ribeiro. “Nosso medo era que uma equipe ficaria desempregada, havia passagens compradas, juridicamente teríamos que arcar com as consequências porque no Brasil não se assina contrato antes, só depois que se está no local para trabalhar”, diz.

Escalada de conflitos entre governo Bolsonaro e classe artística no Brasil

O tom havia sido dado desde fim de julho, quando um decreto do governo federal anunciava mudanças no Conselho Superior do Cinema (CSC), uma medida acusada por profissionais do setor de esvaziar propositalmente o Conselho para diminuir a participação de artistas e da sociedade civil. Em meados de agosto, o presidente Jair Bolsonaro realizou uma live em suas redes sociais criticando fortemente um edital de projetos para TVs públicas, cujas categorias compreendiam a temática LGBT+. Na ocasião, o chefe de Estado chegou a afirmar que se a diretoria da “Ancine não tivesse mandatos”, “já teria degolado tudo”.

Bolsonaro chegou a se gabar de ter “abortado” “missões” como uma série documental sobre o cotidiano de pessoas transgênero no estado do Ceará. Alguns dias depois, o ministro da Cidadania [que absorveu a extinta pasta da Cultura], Osmar Terra, baixou uma portaria cancelando espetáculos como o Abrazo, da companhia Clowns de Shakespeare, e Gritos, da companhia Dos à Deux, e vetando projetos audiovisuais com temáticas LGBT+. O que veio a seguir configura uma escalada de tensões sem precedentes entre o governo Bolsonaro e diversos setores de produção cultural no Brasil.

No dia 21 de agosto, quando foi publicada a portaria de Terra, o então secretário especial de Cultura, Henrique Pires, anunciou que deixaria o cargo por não concordar com o cancelamento dos espetáculos e afirmou na ocasião ao jornal Folha de S. Paulo estar “desafinado com ele [Terra] e com o presidente sobre liberdade de expressão”. Osmar Tentar tentou minimizar o depoimento do ex-secretário dizendo que Pires tentava “produzir uma narrativa” para justificar “uma saída inevitável”.

Em setembro, procuradores do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro abriram um processo para apurar a razão do fechamento do edital criticado por Bolsonaro, desconfiando de censura. Além do universo LGBT+, críticas ao regime militar também estariam proibidas, além de menções a milícias e incêndios na Amazônia, que, retratados na peça Caranguejo Overdrive, tiveram sua programação anulada no Centro Cultural Banco do Brasil. No fim de setembro, um terceiro espetáculo –cujo protagonista é um homossexual soropositivo – o Lembro Todo Dia De Você, selecionado através de edital público, foi desprogramado pela Caixa Cultural do Rio de Janeiro, assim como foi cancelado o patrocínio a dois projetos: uma mostra da cineasta feminista pioneira e lésbica Dorothy Arzner, e um ciclo de palestras sobre a democracia.

As justificativas pelos cancelamentos variam, mas parecem seguir o mesmo protocolo: adiamentos, “adequações estruturais” em teatros, e a “impossibilidade” de reprogramar o espetáculo em outras unidades. É o que afirma a resposta enviada pela assessoria de comunicação da Caixa Cultural à reportagem. Segundo o órgão, “não houve ações de cancelamento e alteração no processo de seleção do Programa de Ocupação dos espaços da Caixa Cultural”.

“Ressaltamos que faz parte do protocolo de seleção do banco solicitar informações sobre todos os eventos que serão patrocinados”, diz o órgão, que, no entanto, não respondeu aos questionamentos específicos sobre as peças canceladas enviados pela reportagem até o fechamento desta edição.

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