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Artes plásticas

Telas de Antonio Obá com referências ao racismo estrutural no Brasil conquistam público da Fiac em Paris

O brasileiro Antonio Obá tem pela primeira vez nove pinturas a óleo e três trabalhos de guache e ouro sobre papel exibidos na Feira Internacional de Arte Contemporânea (Fiac) de Paris, aberta até domingo (20) no Grand Palais, na capital francesa. A obra desse jovem artista negro, de 36 anos, questiona o racismo estrutural da sociedade brasileira e é recebida com grande entusiasmo por colecionadores, curadores e instituições europeias.

Sem título, 2019, Antonio Obá. Esta tela foi inspirada pela leitura do "Livro dos Milagres", que narra histórias de curas pela fé.
Sem título, 2019, Antonio Obá. Esta tela foi inspirada pela leitura do "Livro dos Milagres", que narra histórias de curas pela fé. Divulgação/Mendes Wood DM
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Todos os trabalhos de Obá exibidos na Fiac pela galeria Mendes Wood DM foram vendidos antes mesmo da abertura do salão. O estande com as telas do pintor, em apresentação “solo”, atrai o olhar dos visitantes à distância. A maior parte dos quadros são inspirados em fotos de família e retratam negros. As composições apresentam símbolos recorrentes no trabalho do artista: hóstias, oferendas aos orixás, velas e pássaros e corpos-fantasma.

Nascido na Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, em uma família católica tradicional, Obá entendeu muito cedo que existia um problema na relação entre o catolicismo e sua origem africana. Ele decidiu, então, explorar a outra parte da história que não era contada. “Sendo uma pessoa de fé, ele tentou se aproximar de suas origens verdadeiras, estudando as religiões afrobrasileiras, a umbanda e o candomblé”, destaca Isadora Ganem, responsável por artistas brasileiros na Mendes Wood DM de Bruxelas. “É um trabalho muito poético, envolvente e de muita potência, por isso impressiona”, analisa Ganem. Ela ressalta que Obá transita por diferentes suportes – pintura, escultura, montagem, instalação e performance.

Na pintura a óleo inspirada no “Livro dos Milagres”, sem título, uma noiva é retratada ao lado de um anjo de cabeça para baixo. Por uma das mãos do anjo, escorre a cera de uma vela, representando o esperma que vai fecundá-la e dar continuidade à família. Esta composição tem ainda um bebê que cai do céu em fogo. A tela faz alusão a um determinado papel da mulher na sociedade, de acordo com preceitos tradicionais.

Em outro trabalho exibido na Fiac, “O Herói do Fogo Interior”, Obá compôs um artista circense negro cuspindo fogo, em referência a um momento de intensa agitação que ele viveu quando passou um período de autoexílio na Europa, devido à situação política no Brasil.

Outros trabalhos do pintor retratam negros como figuras fantasmagóricas, fantasmas na sociedade, que não os enxerga inteiros nem reconhece as desigualdades sociais que os afetam.

As obras de Obá estão cotadas no mercado internacional em valores que vão de US$ 6.000 a US$ 40.000.

Óleo "Herói do Fogo Interior", 2019, Antonio Obá.
Óleo "Herói do Fogo Interior", 2019, Antonio Obá. Divulgação: Mendes Wood DM

Processo de embranquecimento da raça

O ceilandense tem sua obra apresentada em Paris depois de um período de autoexílio em Londres e Nova York, provocado pelas ameaças de morte que recebeu no Brasil em 2017, quando teve uma exposição interditada no Santander Cultural, em Porto Alegre.

Em uma performance na mostra, Obá aparecia nu, de joelhos, ralando uma santa de gesso com um grande ralador de milho usado antigamente pelos escravos para fazer pamonha. O utensílio estava apoiado sobre uma gamela, onde geralmente se faz as oferendas aos orixás no candomblé. Enquanto o artista ralava a santa de gesso, ele criava uma nuvem de poeira branca que cobria seu corpo negro nu.

Com essa performance, Obá chamou a atenção para o processo de embranquecimento da raça no Brasil, a tentativa de catequização dos povos nativos e também do negro. A partir dessa performance, ele passou a ser perseguido no país. A exposição acabou sendo reaberta posteriormente no Parque Lage, no Rio de Janeiro, com a ajuda de doações de admiradores do artista.

No mesmo ano, Obá teve uma segunda exposição censurada e foi novamente ameaçado de morte por conta de um trabalho questionador. “Ele construiu uma grande caixa contendo hóstias, que representam supostamente parte do corpo de Cristo. Mas ele escreveu o nome de órgãos nas hóstias: pênis, vulva, língua, pescoço”, recorda Ganem. Somando a performance a este trabalho da caixa caixa, ele passou a receber muitas ameaças de morte e se viu obrigado a passar um tempo fora do Brasil.

A primeira apresentação dos trabalhos de Obá na Europa aconteceu em junho, na ArtBasel, uma feira internacional de arte contemporânea realizada na Suíça. Ele exibiu uma instalação num museu que fica dentro de uma Igreja. Para o ano que vem, já estão programadas novas exposições na Europa e nos Estados Unidos.

“Estamos num momento de muita oportunidade para os artistas negros, que foram absolutamente eclipsados esse tempo todo e não tiveram espaço no mercado para produzirem e aparecerem. As pessoas estão prestando mais atenção à questão do racismo”, constata Ganem.

A Mendes Wood DM também representa Paulo Nazareth e Sonia Gomes, artistas com pontos em comum com Obá.

“Os artistas africanos estão no centro das atenções atualmente, mas é preciso olhar para os artistas negros brasileiros, principalmente nesse contexto político de grande constrangimento para o Brasil no exterior, com esse governo racista e homofóbico”, afirma. “São essas vozes que vão combater a outra voz completamente ignorante e contrária à vida, em geral. É um momento em que cai a máscara de que o Brasil é um lugar de uma cultura homogênea, em que as diferenças convivem muito bem. O Brasil é de fato um país que sofre de um racismo estrutural. Abre-se espaço para a autorreflexão, para as pessoas se perceberem dentro desse contexto, e trabalhos como o de Obá são muito importantes para as pessoas atentarem para as construções sobre a história do Brasil, para as pessoas questionarem a história que é contada nos livros. Faz parte de um grande aprendizado pelo qual todos devem passar nesse momento”, conclui a marchand.

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