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França/Japão

Especialistas franceses apontam "golpe" da Nissan contra Carlos Ghosn

A detenção do executivo franco-líbano-brasileiro Carlos Ghosn, presidente da aliança Renault-Nissan-Mitsubishi, foi prolongada nesta quarta-feira (21) por 10 dias em Tóquio. A Promotoria japonesa acusa Ghosn de "conspirar" para dissimular a metade de sua renda num período de quatro anos, ou seja, de fraude fiscal. No entanto, a queda do patrão da Renault é interpretada por analistas e outros grandes executivos franceses como uma manobra da Nissan motivada por interesses estratégicos dos japoneses.

O CEO da Renault, Carlos Ghosn, aguarda a visita do presidente francês, Emmanuel Macron, em fábrica da Renault em Maubeuge, no dia 8 de novembro de 2018.
O CEO da Renault, Carlos Ghosn, aguarda a visita do presidente francês, Emmanuel Macron, em fábrica da Renault em Maubeuge, no dia 8 de novembro de 2018. Etienne Laurent/Pool via REUTERS
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A imagem de executivo ganancioso, fraudador e que "pecou" pela ambição desmedida, como apontam os japoneses desde segunda-feira (19), quando Ghosn foi preso de forma cinematográfica no Japão, não convence muitos analistas franceses. Eles identificam claros elementos de uma trama costurada para tirar o talentoso executivo da presidência do grupo. Para entender a narrativa dos franceses, é preciso reconstituir "cenas do casamento" Renault-Nissan, como faz uma reportagem da rádio pública FranceInfo.

A aliança entre os grupos francês e japonês remonta a 1999. Na época, a Nissan estava à beira da falência e era cobiçada por várias concorrentes. Mas é a Renault que vence a disputa por ter o Estado francês como acionista, uma garantia e tanto para a transação. Carlos Ghosn desembarca na Nissan, promove uma revolução gerencial, demite 21 mil empregados, troca os fornecedores e evita a falência. Três anos depois, a Nissan volta a dar lucros e o brasileiro se torna um herói no Japão.

Desde o início, a aliança foi concebida para manter as duas empresas independentes. Uma holding holandesa, detida meio a meio pelas duas montadoras, é criada em 2003 para promover a aproximação entre as duas sociedades.

Segundo o professor de estratégia da escola ESCP Europe Frédéric Fréry, entrevistado pela FranceInfo, trata-se de uma aquisição sem fusão. A montagem comercial tem um duplo objetivo, segundo o especialista: preservar a independência dos japoneses, sem submetê-los à Renault, e fortalecer o papel de Ghosn, "elo fundamental" dessa aliança.

Na década seguinte, a aliança cresce. Em outubro de 2016, a Nissan anuncia a aquisição de 34% do seu concorrente japonês Mitsubishi Motors. Juntas, em 2017, as três montadoras se tornam a maior fabricante de automóveis do mundo, com mais de 10,5 milhões de veículos vendidos apenas no ano passado. A aliança possui 470.000 funcionários e 122 fábricas em todos os continentes.

Mas o equilíbrio de poder se inverteu. O jornal Libération lembra que no momento da aliança, em 1999, a Renault era lucrativa. Quase 20 anos depois, a Nissan fatura 100 bilhões e pesa quase o dobro da Renault (58 bilhões). Entre 2000 e 2017, foi a Nissan que permitiu a sobrevivência da Renault.

Ghosn manteve o poder para os franceses com japoneses mais fortes

Segundo Fréry, da escola ESCP, o problema é que a Nissan é maior, mais lucrativa e tem melhor imagem do que a Renault, pelo menos do ponto de vista dos japoneses. A Nissan produz carros de luxo e ainda tem um boa fatia de mercado nos Estados Unidos.

Depois de os japoneses passarem vários anos de cabeça baixa, a tensão com os franceses aumentou a partir de 2015, quando o Estado francês ampliou temporariamente sua participação acionária na Renault. Ghosn pode ter sido o salvador da montadora japonesa, mas continua sendo "um estrangeiro" para os japoneses, destaca o professor Fréry.

Seu poder sobre a aliança incomoda os japoneses. "Existe uma dimensão política poderosa e violenta em Ghosn: ele eliminou sistematicamente seus números 2, inclusive do lado japonês. Ele sempre deu um jeito de fazer com que não existissem sucessores possíveis", assinala o economista da ESCP.

Os empregados japoneses ficaram irritados ao ver as tecnologias, a produção de certos veículos (como o pequeno sedã Micra, fabricado na França) e parte dos lucros recuperados pela Renault. E, como relatado pelo jornal de negócios Nikkei, na terça-feira (19), a "recompensa excessiva" de Ghosn deu origem a "críticas crescentes". Em 2016, ele recebeu uma remuneração total de € 15,6 milhões, tornando-se o terceiro patrão mais bem pago dos líderes da Bolsa de Valores de Paris.

Ameaça de integração da Nissan teria motovado 'complô' japonês

O ressentimento aumentou nos últimos meses com o surgimento de rumores sobre uma fusão da Renault-Nissan. Ghosn estaria trabalhando para tornar "irreversíveis" os laços entre as duas montadoras, de acordo com uma nota de Kentaro Harada, analista da SMBC Nikko Securities.

"A ideia era colher os benefícios das sinergias, com maior disposição para integrar tecnologias compartilhadas, gestão compartilhada", diz Fréry. O suficiente para perturbar os japoneses, ansiosos por manter sua independência e poder. "A Nissan deseja a independência", confirma no Huffington Post o analista Christopher Richter, da empresa de consultoria especializada no setor CLSA.

Para o pesquisador Sébastien Lechevalier, entrevistado pela RFI, "o caso tem ares de um acerto de contas". "Ghosn foi muito bem-sucedido em tudo o que fez na Nissan, mas, mesmo se o acordo com a Renault é oficialmente uma aliança, existe uma forte relação hierárquica entre as duas empresas, que está invertida porque a Renault domina enquanto a Nissan é muito mais importante", explica o especialista da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) de Paris, estudioso do capitalismo japonês.

Para Lechevalier, tornou-se impossível para os japoneses abdicar do controle de uma grande empresa emblemática na história do capitalismo no arquipélago. Deixar a Nissan em outras mãos que não as de colaboradores japoneses pesou na trama para afastar Ghosn da direção. "Em algum momento na troca de documentos confidenciais houve uma intervenção, um sinal verde dado por outros executivos da Nissan que queriam se livrar de Ghosn", acredita.

"Golpe de Estado"

De acordo com alguns analistas do setor, a queda de Ghosn é tão espetacular que pode realmente esconder um "golpe de Estado" do grupo japonês. Para Nobutaka Kazama, professor da Universidade Meiji, em Tóquio, a divulgação de elementos relacionados aos ganhos de Ghosn "poderia ter sido planejada na esperança de rejeitar uma integração por iniciativa da Renault".

Sem ser afirmativo, o deputado francês Jean-Christophe Lagarde também evoca essa hipótese, pedindo ao governo que cuide das posições da Renault. "Espero que a prisão de Carlos Ghosn não seja uma manobra do Japão para organizar o divórcio entre a Renault e a Nissan", escreveu o líder do partido centrista UDI.

Disputa lembra episódio de Game of Thrones

O economista Fréry diz que o escândalo pode ser comparado a um episódio da série americana Game of Thrones. Quem anunciou a prisão de Ghosn foi o número 2 da aliança, Hiroto Saikawa, CEO da Nissan. Em sua declaração, ele "massacrou" o executivo franco-líbano-brasileiro, destaca Fréry.

Richter, analista da consultoria CLSA, observa que Saikawa descreveu a história da recuperação da montadora como sendo "fruto do trabalho de um grande grupo de pessoas", e não do único e carismático CEO da Renault. "Ele se apresentou como o mentor do golpe", nota Richter.

"Saikawa sabe muito bem que Ghosn elimina seus números 2. Ele teria tomado a dianteira sobre Ghosn?", questiona Fréry, enfatizando que desta vez o CEO da Renault enfrentou um adversário pior do que ele. "Saikawa usa visivelmente as acusações contra Ghosn para aumentar seu peso na Nissan e deixar sua marca na empresa", diz Hans Greimel, especialista da publicação Automotive News no Japão.

Do lado francês, o conselho de administração da Renault designou o número 2 de Ghosn, Thierry Bolloré, para assumir a presidência interina da empresa.

Apoio de patrões franceses a Carlos Ghosn

Na França, os patrões estão começando a manifestar um certo apoio a Ghosn. Stéphane Richard, CEO da empresa de telefonia Orange, condenou o linchamento público de Ghosn chamando a atenção para uma reportagem no jornal britânico Financial Times, que evoca os interesses adjacentes à fraude fiscal. O ex-ministro da Economia Thierry Breton, CEO da Atos, também se referiu a Ghosn como um "grande empreendedor" e disse ter ficado surpreso com a "extrema violência" de sua prisão. "Eu acho que o processo está apenas começando (e) que será muito difícil para a Nissan nomear um novo presidente", afirmou Breton.

Em todo caso, o governo francês está atento à manobra. O ministro da Economia e Finanças, Bruno Le Maire, vai se reunir nesta quinta-feira (22) em Paris com o ministro japonês das Finanças, Hiroshige Seko, para tratar do futuro da aliança Renault-Nissan-Mitsubishi.

O mesmo tribunal de Tóquio estabeleceu hoje que outro importante executivo da Nissan, o americano Greg Kelly, também ficará em prisão temporária por 10 dias na capital japonesa, investigado no mesmo inquérito.

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