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Catalunha

Referendo divide profundamente a sociedade catalã

"I tot això qui ho paga?" (E tudo isso, quem paga?), disse o escritor catalão Josep Pla (1897-1981), ao chegar em Nova York, em  1954, ao ver os arranha-céus e a quantidade de luzes. A advogada catalã Maria (nome fictício), 50, usou esta referência hoje em sua página pessoal no Facebook, para referir-se aos custos – não só de dinheiro, mas sobretudo emocionais, devido à crescente intolerância (ou sombras, para contrapor às luzes vistas por Pla) que ela observa entre seus conterrâneos – do referendo pela independência da Catalunha, que está previsto para este domingo (1).

Manifestação pro-referendo na Universidade de Barcelona. No cartaz vemos a foto do ditador Francisco Franco com o primeiro ministro Rajoy.
Manifestação pro-referendo na Universidade de Barcelona. No cartaz vemos a foto do ditador Francisco Franco com o primeiro ministro Rajoy. REUTERS/Juan Medina
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Nascida na Catalunha e filha de pais igualmente catalães, Maria se tornou uma ativista contra a independência nas redes socias, principalmente Facebook e Twitter, por não considerar legítimo este referendo e por sentir que já existe um grande estrago na sociedade catalã, totalmente polarizada com a questão. “Com essa divisão, os catalães já perdemos amizades, a comida em família no domingo… para todo este ódio gerado”, lamentou.

Por ter sofrido perseguições e ter recebido até mesmo um telefonema intimidador, com xingamentos dirigidos a ela e “ameaças de expulsão da Catalunha”, Maria pediu anonimato para falar com a RFI.

Ela disse que não vai votar no domingo pois não considera legítimo este referendo. “É inconstitucional. Eu não vou votar para legitimar um golpe de estado formal”, disse, citando a Constituição espanhola de 1978, que garante a autonomia das regiões, mas proíbe referendos sobre secessões. "É uma constituição democrática, que foi votada por 90% dos espanhóis, inclusive aqui na Catalunha”, afirmou.

‘Direito fundamental’

De seu lado, o também catalão Alexandre Barón, 42, policial, está a favor do referendo e da independência e diz que esta Constituição, votada três anos após a morte do ditador Francisco Franco (1892-1975), não representa a Espanha atual. “Eu vou votar no domingo com certeza e com muita alegria. É um direito fundamental nosso”, disse. “O Estado espanhol não pode impedir isso.”

“A questão já não é ‘independentismo, sim ou não’. A questão aqui é ‘democracia, sim ou não’. As pessoas estão mobilizadas por isto. Todo mundo que eu conheço, inclusive eu, vai votar porque está contra a repressão ditatorial do governo (espanhol)”, escreveu uma brasileira-espanhola, que também preferiu não se identificar, numa rede social.

Segundo Barón, o Estado espanhol não quer reconhecer o direito de autodeterminação dos povos e está fazendo de tudo para negar-lhes este direito, fazendo com que muitos espanhóis que vivem na Catalunha – como seus pais (ele, andaluz; ela, aragonesa) – e que não tinham especial apreço pelo independentismo, se vejam levados a votar, e a votar pelo sim. “No início, eles não entendiam por que a gente queria se independentizar. Agora, com tanta repressão do Estado espanhol, estão convencidos”, contou.

Outro argumento utilizado por Barón é o financeiro. “A Catalunha produz 20% da riqueza espanhola, mas só recebe 10% de investimentos”, disse, acrescentando que este é um dos pontos da Constituição espanhola que precisa ser mudado, mas que todas as tentativas de mudar a Constituição esbarraram na falta de diálogo com o governo de Madri. “O governo de Madri sempre diz não e nunca esteve aberto ao diálogo.”

Silenciamento dos dissidentes

Para Maria, a polarização é tão grande que qualquer pessoa que tenha coragem de se colocar contra o referendo – principalmente nas redes sociais, onde as batalhas são mais agressivas – é logo chamada de fascista. Mas, segundo ela, fascistas podem ser considerados os que usam o argumento de que a Catalunha, por ser mais rica, não deve ajudar as outras regiões da Espanha a se desenvolverem.

Ela diz que, assim como ela, muitos catalães que são contra a independência estão sendo silenciados, pois, se expressarem publicamente a sua opinião com este clima que se instalou na Catalunha pré-referendo, correm o risco de perderem contatos, amigos, negócios.

“Se, para mim, que sou advogada em Barcelona, é difícil, imagine para um padeiro em um povoado? Se ele disser que é contra, ninguém mais vai comprar o seu pão, ninguém vai falar com ele”, disse ela, que tem um grupo no whatsapp de “dissidentes” para se apoiarem e se defenderem das acusações que recebem quando manifestam publicamente sua opinião. “Há muita hostilidade entre as pessoas, o estrago já está feito”, conclui.

Segundo a advogada, os meios de comunicação, a comunidade educativa e os vilarejos estão a favor do referendo e isso pode ser visto pela quantidade de estudantes nas ruas e pela cobertura dos meios de comunicação. “O governo da Catalunha já tem uma autonomia grande, eles transmitem este desejo independentista pelo sistema escolar, não me surpreende que sejam os mais jovens os mais desejosos da independência”, disse.

E depois?

Mas, para ela, eles não conhecem as consequências, porque sequer param para pensar nisso. “Não sabem que, se nos tornarmos independentes, estamos fechando mais uma fronteira, em vez de abrir, estaremos automaticamente fora da União Europeia e teremos dificuldades de relação com a maioria dos países europeus, pelo simples fato de que muitos deles também enfrentam desafios separatistas e não vão querer abrir o perigoso precedente de negociar com uma região separatista”, disse, analisando os aspectos legais.

Ela compara este referendo ao Brexit. “Eu o vejo como o Brexit, as pessoas votam por medo ou paixões e não têm a menor ideia do que vem depois. Eu não encontro nenhum independentista que saiba argumentar sobre o nosso provável isolamento e a criação de mais uma fronteira em pleno século 21”, disse, acrescentando que vê um déficit democrático muito grande do lado independentista.

Barón acha que a relação dos países com a possível Catalunha independente vai ser pragmática. “É a realpolitik, eles vão ter que negociar e encontrar uma solução onde todos saem ganhando”, acredita o policial, que diz ter recebido ordens de um juiz de Barcelona para retirar as urnas e não permitir a votação, embora ele ache que isso seja impossível de cumprir, pois não sabe como pode impedir que milhares de pessoas votem, exerçam o que ele chama de “desobediência civil pacífica.”

O referendo está previsto para acontecer neste domingo, 1º de outubro, embora o Estado espanhol tenha proibido que a votação seja realizada nas escolas e tenha bloqueado os sites que mostram os locais de votação.

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