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O Mundo Agora

Fim de emenda que proíbe aborto na Irlanda revela crise institucional da Igreja

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Durante décadas, parecia impossível. Mas a República da Irlanda, um dos países mais católicos do mundo, acaba de votar para acabar com a proibição do aborto. A emenda número 8 da Constituição que proibia a interrupção da gravidez era uma das mais repressivas da Europa: para ter assistência médica, milhares de irlandesas arriscavam 14 anos de prisão.

A histórica vitória do "sim" no referendo sobre o aborto na Irlanda
A histórica vitória do "sim" no referendo sobre o aborto na Irlanda REUTERS/Max Rossi
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Em 1983, a poderosa Igreja católica havia conseguido fazer aprovar a famosa emenda. Inscrita no texto constitucional, ficou impossível mudar alguma coisa pela legislação comum. Mas desta vez, a Irlanda decidiu entrar na modernidade: com uma participação recorde, dois terços dos eleitores aprovaram descartar a emenda.

Claro, a Irlanda não abandonou a religião católica. O catolicismo continua sendo a principal referência cultural. É verdade que as missas andam vazias e poucos são os que ainda aceitam as lições de moral e as regras de comportamento ditadas pelo clero, mas os rituais religiosos continuam importantes: batismo, casamento, enterro. O que realmente entrou em crise foi a autoridade institucional da Igreja. E não é por menos. Padres e bispos amargaram escândalos um atrás do outro: pedofilia, venda de bebés de mães solteiras para depois servirem de escravos em lavandarias administradas por religiosas ou a descoberta de um ossuário de crianças num convento.

Degradação moral

Essa degradação moral do clero somou com mudanças radicais no modo de vida dos irlandeses devidas à prosperidade econômica, o acesso à informação e à facilidade de viajar pelo resto da Europa para sentir sociedades menos encalacradas na tradição religiosa. Em 1995, pouco depois do estabelecimento da liberdade de circulação das pessoas na União Europeia, uma lei legalizando o divórcio conseguiu passar raspando, apesar da hostilidade da Igreja.

Mas já em 2015, os eleitores deram ampla maioria ao casamento homossexual, e elegeram um primeiro ministro que não esconde sua homossexualidade, e ainda por cima, é filho de imigrantes indianos. Agora, com o voto sobre o aborto, a velha Irlanda, branquela e beata, tropeçou na lata de lixo da história.

Pena que já vem tarde. Além dos Estados Unidos, em vários grandes países da Europa – Polônia, Eslováquia, Espanha, Itália e até a Noruega – governos e movimentos tradicionalistas estão montando poderosas campanhas para reverter as leis que autorizam a interrupção de gravidez. A palavra de ordem implícita é recuperar o controle sobre a mulher e seu corpo. E utilizam até a indignação geral progressista contra os predadores sexuais, para propagandear uma volta a sociedades moralizadoras e repressivas no campo dos costumes.

Decisão pode beneficiar abertura na Irlanda do Norte

A confusão está abrindo espaço para grupos políticos profundamente conservadores e até para a extrema-direita com perfume neonazista. Mas a primeira vítima geopolítica do voto irlandês pode ser a primeira-ministra britânica, Teresa May. Até membros do seu próprio gabinete estão pressionando para que ela decrete um afrouxamento da lei anti-aborto ultra-repressiva da Irlanda do Norte que faz parte do Reino Unido.

O problema é que a sobrevivência do seu governo depende do apoio do Partido Unionista dessa enclave britânica. E os unionistas não querem nem saber em mexer na lei, nem que seja para que ela seja igual à das Ilhas Britânicas. Os irlandeses do norte não querem uma nova fronteira com o sul, mas também não querem uma entre eles e a Grã-Bretanha.

A vitória do “sim” no referendo irlandês abriu outra crise para May, já atrapalhada na incapacidade de negociar um Brexit palatável com a União Europeia que exige uma solução clara para o estatuto econômico da Irlanda do Norte. A questão do aborto complicou ainda mais a pendenga.

 

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