“Franceses adoram uma guerra civil ideológica como a do burquíni”
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A cena é completamente surrealista... e perigosa. Quatro policiais armados numa praia francesa obrigando uma mulher muçulmana a tirar a roupa, com o argumento de que um véu à beira mar era uma “ameaça à ordem pública”. A foto nas redes sociais criou uma verdadeira convulsão. E os franceses adoram uma guerra civil ideológica.
Os jornais, nas Américas e no resto da Europa, caçoaram e até se indignaram. Fotos de policiais multando um biquíni numa praia italiana em 1957 pipocaram na internet. Será que a França esqueceu que há pouco tempo atrás o biquíni é que era proibido? Claro, controlar o corpo das mulheres e suas roupas sempre foi um objetivo-mor de poderes machistas e patriarcais. Mas hoje, na Europa, o único limite é a lei: isto é, o respeito aos bons costumes. Na prática, um maiô fio dental e, às vezes, um sutiã. Homem então, é sunga e ponto.
Achar que uma muçulmana na praia, sem que ninguém desse bola, é um perigo mortal para os valores da França republicana não faz sentido. Foi a própria intervenção dos guardas municipais que criou um alvoroço nacional, utilizado agora por extremistas justamente para perturbar a “ordem pública”.
Ataques e insultos contra o famoso “burquíni” (uma roupa de banho que só deixa a cara, as mãos e os pés de fora), mas também contra qualquer mulher com pinta de árabe que venha vestida para a praia – nem que seja uma velhinha.
Os islamistas fundamentalistas e os terroristas estão contentíssimos com esse “dom de Alá”. Muitas jovens muçulmanas que usam biquíni e que não querem saber de religião estão se sentindo discriminadas, e algumas já estão querendo sair de véu e burquíni só para provocar ou reivindicar uma identidade muçulmana que, antes, não tinha a menor importância.
“Sonho dos terroristas”
Pior ainda, extremistas islâmicos estão querendo montar operações de provocação, levando grupos de mulheres vestidas para as praias enquadradas por machões barbudos e agressivos. É o maior sonho dos grupos terroristas: uma população muçulmana que se sente humilhada e discriminada é o melhor viveiro para recrutar bucha de canhão para os atentados.
É claro que as coisas não são simples. Os islamistas radicais utilizam várias técnicas para criar animosidade entre os franceses de origem muçulmana e os outros. E não podiam deixar de se apoderar do símbolo do burquíni, que foi criado por uma mulher não-muçulmana para ganhar dinheiro com a moda e para permitir às mulheres mais religiosas de se misturarem na praia com as outras sem problemas.
E não há dúvida de que depois dos terríveis atentados em Paris e Nice, a luta contra os terroristas e a propaganda do islamismo radical é uma prioridade absoluta. Começando por acabar com os sermões dos imãs radicais, controlar as manifestações de ódio nas redes sociais, fortalecer os serviços de inteligência, nacionais e europeus, aplicar sem vacilar a lei da laicidade nos hospitais e nas escolas.
A solução não é atacar as liberdades públicas ou ameaçar o estado de direito, como estão pedindo vários políticos, de direita e de esquerda. A solução é a aplicação completa da lei evitando ao mesmo tempo jogar lenha na fogueira. A população francesa tem milhões de pessoas de origem árabe e muçulmana. Elas não vão desaparecer e a super-grande maioria só quer viver em paz como bons franceses.
Nenhum político saiu guerreando contra a obsessão com o pudor das roupas de mulheres de certos grupos cristãos, judeus ou budistas. O problema central é que uma parte da França não consegue aceitar a presença do Islã ou dos árabes. Enquanto essa visão racista continuar criando guerras civis ideológicas, não há mínima chance de escapar da violência terrorista e de não escorregar para um regime autoritário. Ainda bem que o Conselho de Estado, o supremo tribunal administrativo do país, cassou as proibições locais contra o uso do burquíni. É a voz da pacificação e da razão, uma qualidade que também é francesa.
- Alfredo Valladão, do Instituto de Estudos Políticos de Paris, publica sua crônica semanal às segundas-feiras na RFI
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