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Blackface: “Brincar com a raça é privilégio de brancos”, diz sociólogo francês

Tudo parecia absolutamente inocente. Numa postagem do Twitter do dia 17 de dezembro, o astro da seleção francesa de futebol Antoine Griezmann aparece pintado da cabeça aos pés como alguém da raça negra, peruca afro, fantasiado como um jogador dos famosos Harlem Globetrotters. Na legenda da foto, a frase “Festa Anos 80”, seguida de emojis festivos. Uma chuva de comentários indignados de seus seguidores franceses acabou com a festa, acusando o jogador de “racista”, por ter utilizado uma técnica – pintar o rosto e corpo imitando a pele negra - que remonta a cabarés norte-americanos segregacionistas, contemporâneos da Guerra da Secessão, no final do século 19 nos EUA, o blackface.

Antoine Griezmann, astro da seleção francesa de futebol, aparece fazendo blackface, fantasiado como um jogador dos famosos Harlem Globetrotters em foto nas redes sociais, apagada depois da chuva de críticas de seguidores.
Antoine Griezmann, astro da seleção francesa de futebol, aparece fazendo blackface, fantasiado como um jogador dos famosos Harlem Globetrotters em foto nas redes sociais, apagada depois da chuva de críticas de seguidores. Crédit : Twitter/Antoine Griezmann
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A resposta de Griezmann veio em dois tempos. Num primeiro momento, assustado pela avalanche de críticas, o jovem atacante francês do Atlético de Madrid escreveu: “Calma, meus amigos. Eu sou fã dos Harlem Globetrotters e desta bela época... É uma homenagem...”. Apesar do apoio recebido por alguns nomes da imprensa esportiva, que ressaltavam o amor do jogador pelo basquete norte-americano, o público francês continuou a não engolir a imagem de um Griezmann loiro de olhos azuis fantasiado como um “típico” negro do Harlem da década de 80 no Bronx.

A indignação se resume na crítica da jornalista francesa e famosa apresentadora de televisão Aïda Touihri: “Caro Antoine Griezmann, o blackface: no melhor dos casos, é inconveniente; no pior, é racista. Em todo caso, isso não se faz. Em breve: suprima o post. E boa festa, hein! ”. Griezmann voltou ao Twitter, pediu desculpas a seus seguidores e reconheceu que foi “desajeitado”. “Desajeitado é quando você quebra um prato”, retorquiu o jovem e negro Pierre d’Almeida no Twitter, onde possui mais de cinco mil seguidores. A avalanche de críticas continuou até que o astro do futebol francês suprimisse enfim a imagem de sua conta na rede social.

Exagero? Mimimi? Signo do paroxismo dos tempos do “politicamente correto”? No Brasil, a exposição “Pourquoi pas?” ("Por que não?", em português), da ex-consulesa da França no Brasil, Alexandra Loras, fez enorme barulho no final de novembro. Em cartaz na Galeria Rabieh, na área nobre de São Paulo, a mostra traz imagens de personalidades do mundo inteiro, coloridas artificialmente para que se tornassem negras, por meio de técnicas digitais de manipulação de imagem. O movimento negro no Brasil não perdoou o “blackface”, acusando-o de “desserviço ao movimento negro”, e a ex-consulesa, ela mesma negra, defendeu-se dizendo que o objetivo da obra seria justamente questionar se a posição social e profissional dessas personalidades [Rainha Elizabeth, Sílvio Santos, Gisele Bündchen] seriam as mesmas se elas fossem negras.

A ativista Alexandra Loras
A ativista Alexandra Loras Arquivo pessoal/facebook

“Vocês não entenderam minhas intenções”

Para o sociólogo francês Eric Fassin, professor da Sorbonne Paris VIII, de boas intenções o inferno está cheio. “Tenho o sentimento, sem pretender julgar a exposição em si, que não vi, que primeiro, há uma diferença na recente discussão sobre o blackface na França [o caso Griezmann], porque não se trata de uma pessoa branca que decide se pintar de preto. Nesta situação, as personalidades cuja pele e traços foram ‘escurecidos’ nas imagens, não o escolheram. Esta é uma diferença importante em relação ao blackface”, preconiza Fassin, em entrevista à RFI Brasil.

“No entanto, existem pontos em comum. Quando na França vemos um jogador de futebol que se fantasia de Harlem Globtrotter, para se justificar ele diz ‘é uma homenagem’, ou seja, ‘vocês não entenderam minha intenção’. Acredito que a Alexandra Loras, no Brasil, opera dentro da mesma lógica, ela argumenta que sua ‘intenção’ seria crítica [em relação ao racismo, dentro da exposição].  Penso que a questão do blackface obriga a repensar o racismo fora da questão das intenções”, rebate Fassin.

O sociólogo traz para a discussão a controvérsia gerada pela exposição Exhibit B na França e na Inglaterra. De autoria do artista sul-africano Brett Bailey, a performance viva mostra negros acorrentados, uma crítica aos “zoológicos humanos” do fim do século 19 na Europa. “Os atores negros também observavam os espectadores, espelhando a proposta. Era um olhar sobre o zoológico humano, e a instalação foi acusada de racista. No entanto, a performance inverte o olhar, porque o espectador também é observado. E as pessoas na França disseram: ‘vejam, a intenção do trabalho não é racista, é até antirracista’. Eu acho que não é suficiente que as intenções sejam boas. Não é suficiente que as ideologias sejam antirracistas para escapar à questão do racismo”, afirma.

A Rainha da Inglaterra Arte engajada #ARTivism Sob a curadoria do artista e grafiteiro paulistano Ėnivo, a exposição apresenta 20 retratos de personalidades brancas que tiveram seus tons pele escurecidos por meio de manipulação digital e ganharam traços afrodescendentes, entre elas Donald Trump, Rainha Elizabeth, William Waack, Marilyn Monroe, Silvio Santos, João Doria, Dilma Rousseff, Michel Temer, Geraldo Alckmin, Xuxa e Gisele Bündchen. Nesse mundo “invertido”, Alexandra Loras propõe, com uma dose de humor e ironia, uma reflexão mais profunda sobre o protagonismo do negro na história. “Será que faríamos os mesmos comentários preconceituosos? Teríamos as mesmas posturas? Tomaríamos as mesmas decisões? Trataríamos os diferentes da mesma forma?”, pergunta Enivo. A ideia da exposição teve o apoio imediato da galerista Lourdina Jean Rabieh e de Vinicius Dapper, CEO da Zeferino, depois de assistirem a ex-consulesa em uma de suas palestras usando essas imagens para refletir sobre o papel do negro na sociedade. “Meu objetivo é provocar uma experiência de empatia profunda nas pessoas mostrando celebridades e políticos brancos no país com a segunda maior população negra do planeta e onde essa maioria é tratada como minoria”, explica. “Apresento essa realidade invertida para provar o quanto estamos longe de uma democracia racial, que só existirá de fato quando tivermos os 54% da população negra do Brasil no Congresso, na mídia, nos boards executivos, ocupando cargos de liderança”. #ARTivismo #diadaconsciencianegra

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Racismo também vem de pessoas “do bem”

 “Quando dizemos para as pessoas que olham as obras, ‘vocês não entenderam nada’, isso dobra o sentimento de racismo, porque é como se disséssemos ‘vocês não entendem nada de arte’”, explica Fassin. “Cria-se, na exposição Pourquoi Pas? [da ex-consulesa Alexandra Loras], que já traz uma questão em si mesma, um dispositivo que é feito para despertar reações, mas a artista não inclui essas reações em sua reflexão política, que é centrada em suas ‘intenções’ totalmente”, afirma.

Para o especialista, o racismo contemporâneo não pode ser pensado apenas a partir da intenção, mas a partir da recepção da obra, e da enorme distância entre as duas pontas. “Essa distância mostra que as pessoas não veem sempre a mesma coisa, o que é normal, acima de tudo quando vivemos numa sociedade marcada por tensões raciais. A intenção do artista não é mais importante que toda as outras considerações, sobretudo em sociedades que lidam com o problema do racismo. As pessoas que sofrem com o racismo sabem muito bem que isso não vem apenas de sujeitos ‘oficialmente’ racistas, mas também de pessoas ‘do bem’”, pontua.

“Brincar com o que não é brinquedo”

“Se não nos perguntarmos sobre a questão do racismo estrutural e sistêmico, nunca compreenderemos nunca porque há pessoas que dizem ‘pouco importa suas intenções, o que eu vejo é o resultado, e este resultado me diz que podemos brincar com a raça”, desenvolve o sociólogo. “Brincar com a raça é um privilégio. Frequentemente um privilégio racial, são os brancos que podem brincar de serem negros por uma noite, mas pode ser também um privilégio de classe, quer dizer, o artista que se sente autorizado a brincar com o que não é brinquedo para os outros”, critica Fassin.

“Ser francês no Brasil, mesmo quando somos negros, é um pouco como ser branco”

“A indignação de parte do público vem de pessoas que dizem ‘não se pode brincar com essas coisas’, e eles não falam isso porque não têm humor, mas porque a violência da dominação racial é tal que, na maioria do tempo a grande maioria das pessoas pode brincar com isso. Vive-se a raça como uma experiência de discriminação”, afirma. “Como a criação artística é livre, alguns artistas acreditam que podem brincar livremente com algumas questões sociais extremamente complexas. Esse jogo, no entanto, é muito complicado. Isso não significa que não podemos brincar com essas questões, mas as condições desse jogo são bem complicadas”, enfatiza.

“Mesmo se o artista for negro”, completa o especialista. “No caso de Loras, o que a artista afirma é algo como ‘estou acima desta determinação social’. Acredito que a questão do privilégio é fundamental para compreender a intensidade da reação das pessoas [à exposição ‘Pourquoi Pas?’]. Nem todo mundo pode brincar com a raça. Para as pessoas que a criticam, não muda nada o fato dela ser negra, porque, no fundo, o que ela diz é que ela é uma exceção. Imagino que ser francês no Brasil, mesmo quando somos negros, é um pouco como ser branco”, finaliza Fassin.

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