Peça "Apareceu a Margarida", marco contra a ditadura brasileira, faz sucesso há 40 anos na França
Publicado em:
Ouvir - 07:52
"Madame Marguerite" é o título da versão francesa da peça brasileira "Apareceu a Margarida", em cartaz há mais de 40 anos na França. Escrita pelo dramaturgo carioca Roberto Athayde em 1973, o monólogo, ícone da resistência em plena ditadura militar no Brasil, ganhou corpo com a interpretação de Marília Pêra no teatro Ipanema, na capital fluminense. Em 1974, o espetáculo se torna um marco graças à interpretação da grande dama do teatro francês, Annie Girardot, no teatro Montparnasse, em Paris. Segundo o autor, a peça já foi montada em 300 produções diferentes em todo o mundo, sendo 48 delas na Alemanha, e cerca de 60 na França.
"Se você avançar, você morre. Se você recuar, você morre. Então por quê você não avança?", diz a atriz francesa Stéphanie Bataille ao final do espetáculo "Madame Marguerite" para uma sala lotada no Teatro Lucernaire, em Paris, em dezembro de 2017. O provérbio francês serve de epílogo-provocação para a peça "Apareceu a Margarida", do dramaturgo carioca Roberto Athayde.
Stéphanie Bataille, que encarna a famosa professora em 2017, na capital francesa, considera que o texto, de 1973, continua atual nos dias de hoje. "Acredito que a peça Apareceu a Margarida denuncie a não-cultura. Margarida quer absolutamente que as pessoas saibam. É muito bonito quando ela diz – 'não será no século 20 que renunciaremos ao saber'. Milhares de anos de cultura, de civilização, para chegar ao Verbo, é magnífico isso", afirma Bataille.
"Penso que as pessoas sofrem doutrinação quando não são instruídas e quando têm medo. Todos os grandes ditadores tomaram o poder quando as pessoas tiveram medo. E acho que os fascistas e a extrema-direita só existem pela falta de conhecimento", analisa a atriz, que também esteve à frente dos teatros Antoine e Marigny, em Paris.
Do Brasil para a França, o grande salto da Margarida
O autor da peça, Roberto Athayde, conta que a presença do diretor de teatro argentino, Jorge Lavelli, no Brasil, foi definitiva para o sucesso do texto em Paris. "Lavelli foi convidado por nossa grande atriz Thereza Rachel para dirigí-la em 'A gaivota', de Tchecov, então ele veio ao Rio para fazer esse trabalho em janeiro de 1974, quando 'Apareceu a Margarida' já estava em cartaz havia quatro ou cinco meses", relata.
"Como eu já sonhava com Paris,convidei o Lavelli para ver 'Apareceu a Margarida' no teatro Ipanema. Ele veio, viu e, finalmente, montou a peça com a Annie Girardot, foi através dele", lembra o dramaturgo e também diretor de teatro.
(Confira abaixo trechos da montagem histórica de "Madame Marguerite" na França, com Annie Girardot)
Driblando a censura da Ditadura Militar
Para Roberto Athayde, a existência de uma peça como "Apareceu a Margarida" em pleno período de Ditadura Militar foi uma espécie de "milagre". "Eu atribuo este milagre a duas coisas", explica. "Primeiro, evidentemente, ao grande talento do Aderbal Freire Filho, que introduziu certas mudanças na peça que tornaram a montagem possível", continua.
"O outro fator importante foi o fato de eu ser filho do [ex-presidente da Academia Brasileira de Letras] Austregésilo de Athayde. Ele tinha um prestígio imenso e quando houve o ensaio para a Censura aqui no Rio - porque além de passar o texto em Brasília, naquela época você tinha que se submeter a um ensaio in loco visual para eles, depois da peça pronta. Então meu pai convidou uma meia dúzia de acadêmicos dos mais respeitados e vetustos, que vieram nos prestigiar. Os censores ficaram estupefatos quando viram aquela gente famosa no teatro Ipanema e abaixaram a idade da peça de 18 anos para 14 anos", afirma o autor.
"Depois vieram as consequências", conclui Roberto Athayde. "Quando a peça estreou, houve uma chuva de denúncias e o espetáculo foi fechado pela polícia", lembra. "Esta peça teve também o efeito de 'devorar' o resto da minha obra, acabei virando o autor de uma peça só", conta Athayde, que possui 28 peças em sua carreira.
O choque do retorno ao Brasil, a inspiração de "Apareceu a Margarida"
"Houve múltiplas inspirações, mas a centelha veio do seguinte. Eu era um estudante de música, queria ser pianista, sou um pianista frustrado, 'manqué', como dizem os franceses. Fiquei fora do Brasil dos 17 aos 21 anos estudando música, e também francês, em Paris, estava aí na Cidade Universitária em 1968. Não tinha conhecimento dos efeitos da Ditadura no Brasil, mas sim um histórico de muitos problemas na escola, fui expulso etc", conta Athayde.
"Quando volto ao Brasil, aos 21 anos, estava completamente inocente no aspecto político e tive um choque muito grande. Eu já tinha desistido de estudar música, comecei a tomar conhecimento da política e o choque da descoberta da Ditadura Militar, somadas às minhas vivências escolares, a repressão que eu tinha sentido na escola, a soma dessas coisas me levou a escrever a peça", relata o artista.
Uma peça que "entrou para a História"
"Em primeiro lugar, trata-se de um exercício extraordinário para atores, é um desafio", afirma Stéphanie Bataille Eu trabalhei com o texto original de Roberto Athayde, não usei a adaptação que é frequentemente montada. Este texto vem se tornando um grande clássico, como um Molière, um Marivaux ou um Beaumarchais. O Roberto entrou para a História graças à peça Apareceu a Margarida, que é um exercício formidável para uma atriz, um desafio, é uma defesa, um postulado, não dá para ser mole, neste texto é preciso se lançar.
Segundo a atriz Stéphanie Bataille, o olhar de Roberto Athayde foi positivo sobre a atual montagem francesa. "Ele me disse que foi a 'Madame Marguerite' mais poética que ele viu. Foi isso que o tocou na nossa montagem, a poesia que consegui levar para a cena graças ao trabalho desenvolvido com a diretora Anne Bouvier", relata.
"Bouvier trabalha uma poesia absoluta, uma delicadeza e também uma loucura. Acredito que o autor adorou o fato de passar de um registro a outro", diz a atriz. "Eu sou institiva, não sou uma intelectual. Adoro o lado intelectual, mas eu sou um animal, eu na verdade devorei 'Apareceu a Margarida'. Engoli as palavras de Roberto, eu decidi não intelectualizar a Madame Margarida, eu a absorvo todos os dias", conta Bataille.
A atriz evoca o caráter de denúncia da peça, personificado pela personagem da professora Margarida."Apareceu a Margarida denuncia a não-cultura, Margarida quer que as pessoas se instruam a qualquer preço. É muito bonito quando ela diz que não será no século 20 que renunciaremos ao saber. Há milhares de anos acumulados de saber, de cultura, de civilização, para chegar enfim ao Verbo. Isso é absolutamente magnífico", defende a atriz.
Stéphanie Bataille conta que "Madame Marguerite" fará uma grande tournê pela França ao fim da temporada no Teatro Lucenaire, em Paris, em 27 de janeiro de 2018. "Espero depois ir ao Brasil com a peça", finaliza a atriz.
NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.
Me registro