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Rendez-vous cultural

Mostra na Escola Nacional de Arquitetura de Paris celebra Lina Bo Bardi

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Ela se formou arquiteta no meio das ruínas da Segunda Guerra Mundial, na Itália, mas foi no Brasil que seu olhar, precocemente comprometido com a arquitetura vernacular, fora do cânones estritamente modernistas, ganhou estatura e concretude. Lina Bo Bardi projetou algumas das obras icônicas da urbanidade brasileira, como o Masp, o Museu de Arte de São Paulo; o Sesc Pompéia; o Teatro Oficina e a Igreja do Espírito Santo do Cerrado, esta última no Triângulo Mineiro. Redescoberta pelo olhar europeu no centenário de seu nascimento, em 2014, a arquiteta é agora homenageada na exposição "Lina Bo Bardi, Enseignements Partagés" ("Lina Bo Bardi, Ensinamentos Compartilhados", em português) que ocupa três andares da Escola Nacional de Arquitetura de Paris, uma parceria com a Universidade Roma Sapienza.

A exposição "Lina Bo Bardi, Ensinamentos Compartilhados" ocupa três andares da Escola Nacional de Arquietura de Paris, que fica em cartaz até 10 de fevereiro de 2018.
A exposição "Lina Bo Bardi, Ensinamentos Compartilhados" ocupa três andares da Escola Nacional de Arquietura de Paris, que fica em cartaz até 10 de fevereiro de 2018. Divulgação
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A mostra, com curadoria de Elisabeth Essaïan e Alessandra Criconi, nasceu de uma parceria entre as duas universidades europeias e recupera a cronologia e os principais conceitos da arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi (1914-1992), num trabalho desenvolvido durante dois anos junto a alunos de arquitetura, artistas, pesquisadores e professores. 

Em maquetes e imagens que "privilegiam o poético ao hiperrealista", o visitante da exposição encontra a caixa arquitetônica do Museu de Arte de São Paulo (Masp), reproduzida em grande escala no primeiro andar, dando destaque também ao ambiente popular das manifestações na Avenida Paulista, por meio de recursos audiovisuais, para além das estruturas arquitetônicas.

No segundo andar, um mobiliário reproduz cadeiras e mesas das salas de convivência do Sesc Pompéia, em São Paulo, projetadas por Lina. Nas mesas, pode-se consultar publicações de vários países e épocas onde se vê desenhos, ilustrações e artigos da arquiteta que se naturalizou brasileira em 1951. Uma série de fotos, vídeos, maquetes e estruturas do vocabulário arquietetônico completam a exposição, com depoimentos de artistas, profissionais e estudantes que reinterpretam e dialogam com o modernismo "irreproduzível" de Lina Bo Bardi.

 

"Ela foi única", diz Elisabeth Essaïan. "Le Corbusier pode ter produzido um punhado de mini Le Corbusiers, que seguiram sua linhagem, mas não dá para tentar fazer o que Lina Bo Bardi fazia", afirma.

Quando o elemento humano nunca é meramente figurativo

"Lina chega à arquitetura por meio do desenho, da ilustração. Desde jovem já se mostrava uma excelente desenhista, e chegou a criar ilustrações para revistas e livros. Mas, nos desenhos de Lina para suas maquetes, o elemento humano nunca é apenas figurativo, ou um recurso que serve para dar uma noção de escala. A figura humana, no trabalho dela, está sempre desenvolvendo uma ação em relação ao espaço que ocupa, ora fumando, ora cozinhando, ela habita o espaço", explica Essaïan.

Para além da fascinação pela obra de Lina Bo Bardi, a curadoria da mostra desejava saber como representá-la sem cair nas "armadilhas do realismo". "Queríamos manter a poesia de seu trabalho e de seus desenhos. Desenvolvemos todo um trabalho sobre o modo de representação chegando até ao personagem em si", relata a curadora. "Lina amava o canteiro de obras. Chegava a transferir seu escritório para dentro deles, foi assim com o Masp", lembra a pesquisadora.

"Este é um debate que volta e meia aparece no meio arquitetônico francês de hoje, com figuras como Patrick Bouchain, que coloca o canteiro de obras no centro de seu trabalho. Mas na época, o que Lina fazia, no meio dos anos 1980, era bastante marginal. Para Lina o momento da obra é quando ela encontra os outros atores da construção, os engenheiros, os artesãos, os operários", explica.

Essaïan avalia que a arquiteta provavelmente não gostaria de ser qualificada de visionária - a curadora a define como alguém completamente inserida no seu tempo. "Ela antecipa tendências, mas dentro desta extrema atenção ao presente, aos hábitos, e não porque vai teorizar uma espécie de visão futurista do mundo. Não era visionária em relação ao futuro, mas em relação à sua presença no mundo”, conclui .

Lina Bo Bardi - uma cronologia ítalo-brasileira

Em 1944, quase no fim da Segunda Guerra Mundial, Lina, ligada ao Partido Comunista da Itália, encontra no meio editorial e literário, onde trabalhava, seu futuro marido, o historiador e crítico de arte Pietro Bo Bardi, 20 anos mais velho do que ela, dono de uma galeria de arte à Roma. "Ele era um crítico de arte do fascismo e escreveu o manifesto por uma arquitetura fascista do Mussolini. Ele abandona o partido fascista no fim dos anos 1930, seguindo o exemplo de um certo número de intelectuais. Quando eles se encontram, ele já havia deixado o partido, mas é certamente um casal que não possuía, de modo algum, as mesmas convicções políticas. Ela sempre se disse comunista", diverte-se a curadora.

“Nos primeiros anos na Itália, Lina vai se impregnar da cultura italiana que vemos em seus jogos de cena, e também do ponto de vista museográfico, mas principalmente na importância que ela dava à História. Lina Bo Bardi é uma modernista, conceitualmente próxima a Le Corbusier.

Outro elemento importante desse começo italiano é a importância dada à arquitetura vernacular, local, popular, a arquitetura sem arquiteto.  Ela publica artigos sobre a arquitetura não acadêmica, não especializada, e isso vai se revelar mais tarde quando ela conhece Salvador, na Bahia”, conta Essaïan à reportagem da RFI Brasil, na Escola Nacional Superior de Arquietura de Paris.

Em 1946, Pietro Bo Bardi vai para o Brasil a convite de Assis Chateaubriand, na condição de expert de arte, para ajudá-lo para compor seu acervo. Pietro e Lina partem, a princípio, não na condição de imigrantes, mas acabam ficando no país. "Neste momento, a Itália está completamente arrasada e o Brasil era exatamente o contrário. Lina vai dizer isso, que o Brasil é a terra onde tudo se encontra por fazer, e isso dava a ela a primeira oportunidade de construir, coisa que ela nunca tinha feito antes como arquiteta. No meio da guerra, na Itália, ela acabou trabalhando mais no meio editorial", explica a especialista.

"Triste Bahia, oh, quão dessemelhante"

“A experiência baiana a transformou de diversas maneiras", explica Elisabeth Essaïan. "É a primeira vez que ela sai deste centro que é São Paulo, um centro muito influenciado pela Europa. Ela vai descobrir uma cultura completamente diferente e ela viaja sozinha,sem o Bardi, e é na Bahia que ela vai realizar seus primeiros projetos verdadeiramente pessoais, no momento em que há uma vanguarda brasileira que se encontra em Salvador", relata. 

A arquiteta se impregna desta cultura com nomes como Caetano Veloso e Glauber Rocha, longe das influências europeias, e faz muita cenografia de filmes. "Esse encontro com o povo brasileiro vai fazer despontar toda a experiência que ela acumulou na Itália, como o interesse pela arte popular - e não pelo folclore, como ela fazia questão de diferenciar. Antes da Bahia, Lina estava num movimento modernista facilmente identificável. Depois da Bahia, ela desenvolve uma arquitetura verdadeiramente Bobardiana”, analisa a curadora da mostra.

Segundo Essaïan, é neste momento que Lina Bo Bardi se livra de dogmas modernistas. "Ela nunca foi purista: sempre esteve numa espécie de hibridação, uma abertura a diversas culturas. E, acima de tudo, é uma imigrante. Isso explica bastante suas referências. Quando nos mudamos, não temos mais a mesma relação aos outros e às suas próprias raízes", detalha. "Ela era permeável a diversas influências, sem cair no pitoresco do folclore, é isso é muito importante de ser ressaltado. Não havia nenhum tipo de sentimentalismo pelo objeto popular isolado, mas um interesse legítimo pela inteligência de sua utilização  numa economia arquitetural", pontua.

Em 1964, com a ditadura militar, a arquiteta chega a ser interrogada por militares em Salvador e é obrigada a deixar a cidade, partindo de volta à Itália. No seu país de origem, ela é recebida com frieza, quase com desprezo pelos arquitetos italianos. "Suas ideias não foram compreendidas e isso a deixou extremamente triste. Quando ela fez uma conferência em Roma em 1965, os estudantes riram do que ela mostrou, da arte popular. Vemos que existe uma abismo de incompreensão neste momento, entre ela e a arquitetura modernista purista", afirma.

A exposição "Lina Bo Bardi, Enseignements Partagés" fica em cartaz na Escola Nacional de Arquitetura de Paris até o dia 10 de fevereiro de 2018.

 

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