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Reportagem

Alemanha é o primeiro país a permitir o registro de sexo "indefinido" de bebês

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A partir de 1º de novembro, os pais alemães terão a opção de escolher sexo “indeterminado” para os bebês que nascerem com características femininas e masculinas, sem uma predominância definida. Esta ambiguidade rara é conhecida como intersexualidade, e tem origem tanto hormonal como nos cromossomos.

Vincent Guillot, da Organização Internacional de Interssexuais
Vincent Guillot, da Organização Internacional de Interssexuais Arquivo pessoal
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A Alemanha será o primeiro país do mundo a reconhecer o direito de não registrar o filho como menino ou menina. Estima-se que um a cada 5 mil recém-nascidos na Europa sejam intersexuais, mas não há dados conclusivos.

Entre psicólogos, a questão é mais do que polêmica. Especialista em adolescentes e doutora em Psicopatologia e Psicanálise, Raquel Barreira acha que a definição do sexo é importante para a criança desde os primeiros anos de vida. “É a partir daí que a criança vai se identificar ou não com este ideal masculino ou feminino, que é construído tanto pelos pais quanto pelo meio social e cultural com os quais ela convive”, explica. “Além disso, a nossa sociedade ainda não está preparada para viver essa questão como algo indefinido.”

O psicólogo especialista em sexualidade Cláudio Picazio, autor de obras como Diferentes Desejos e Sexo Secreto (Edições GLS), considera que a lei alemã tem o mérito de levantar a questão das pessoas que não pertencem a um sexo ou outro. “É uma atenção que o mundo quer dar para estas pessoas, de considerá-las como parte de um processo democrático”, observa. Entretanto, o profissional concorda que a indefinição pode ser mais complexa de assimilar do que uma eventual troca de sexo no futuro. “Com a aquisição da fala, a criança começa a dar sinais sobre com que sexo ela se identifica mais. Uma definição poderia ser feita neste momento. Deixar para mais tarde poderá ser mais complicado para ela escolher.”

As entidades de defesa dos intersexuais há anos pedem o fim das cirurgias de correção de sexo nos recém nascidos, que quase sempre são considerados meninas. Entretanto o porta-voz da Organização Internacional Intersexual, Vincent Guillot, afirma que a lei alemã é um retrocesso para esta questão, porque além de não estipular a condição de intersexual, ainda deixa a criança sem qualquer definição sobre o sexo.

“A melhor solução, para nós, foi a que escolheu o conselho de ética suíço, há um ano, que diz: ninguém vai operar crianças, mas sim vamos acompanhar os pais psicologicamente e dizê-los que os filhos deles têm uma boa saúde, são inteligentes, mas são simplesmente diferentes”, afirma. “Depois, vamos acompanhar as crianças para uma autodeterminação, e no momento em que elas tiverem a capacidade de dizer “eu sou uma menina”, “eu sou um menino” ou “eu estou bem assim mesmo”, faremos o acompanhamento médico que elas mesmas pedirem.”

Intersexual conta sua história

Vincent é um intersexual francês que foi operado 10 vezes na infância para a retirada de todos os órgãos femininos – mas, na realidade ele jamais se sentia nem menino, nem menina. Hoje, pai de um jovem de 23 anos, ele acha que a definição sexual no nascimento dos bebês é uma medida para satisfazer aos pais.

Qual é a sua opinião sobre esta lei?
A opinião não apenas minha, mas de todas as associações de intersexuais, e particularmente as alemãs, é de que é uma lei muito negativa e contra a qual lutamos muito. Não conseguimos obter o que queríamos.

Por quê?
Porque não se trata da criação de um terceiro sexo, mas sim da desobrigação do registro do sexo no nascimento de crianças intersexuais. Esta medida já existe na França há muitos anos, desde antes dos anos 2000. O sexo pode não ser registrado durante dois anos. Porém o que constatamos na França, e em outros países também, é que nestes casos os pais ficam traumatizados com a falta do registro do sexo de seus filhos, e acabam validando as sugestões dos médicos para fazer mutilações. Ou seja, ao invés de resolver o problema, isso sistematiza as mutilações.

Na Alemanha haverá um prazo para o registro do sexo?
Não, mas no nosso ponto de vista, isso não muda nada, afinal é insuportável, para os pais, que seus filhos tenham um sexo indefinido. Este é um dos pontos mais importantes de um nascimento: o de dizer “tenho um menino” ou “tenho uma menina”. E se eles não podem registrá-los como tais, eles ficam traumatizados.

Portanto é um problema para os pais, e não necessariamente para a criança?
Certamente. Todas as questões de crianças intersexuais são, na realidade, problemas dos pais. Os médicos, aliás, são explícitos ao dizer que não se trata de uma urgência médica, mas é uma urgência social para os pais. É o único caso da medicina contemporânea em que há uma intervenção cirúrgica no corpo de um terceiro para aliviar o sofrimento psicológico de outras pessoas, os pais. Ou seja, é uma questão que trata sobre a tristeza dos pais – nós, quando somos intersexuais, não somos traumatizados por isso.

E qual seria uma boa solução, então?
A melhor solução, para nós, foi a que escolheu o conselho de ética suíço, há um ano, que diz: ninguém vai operar crianças, mas sim vamos acompanhar os pais psicologicamente e dizê-los que os filhos deles têm uma boa saúde, são inteligentes, mas são simplesmente diferentes. Depois, vamos acompanhar as crianças para uma autodeterminação, e no momento em que elas tiverem a capacidade de dizer “eu sou uma menina”, “eu sou um menino” ou “eu estou bem assim mesmo”, faremos o acompanhamento médico que elas mesmas pedirem.

Mas a lei alemã não abrirá o caminho para isso, justamente?
Não, de jeito nenhum. Todos os debates e relatórios parlamentares que originaram a lei excluem os intersexuais e dizem que, na realidade, são meninas que deram errado. Mas isso representa mais ou menos a metade dos casos de intersexualismo, quando há hiperplasia adrenal congênita. Sob a pressão dos médicos, o Parlamento alemão considerou que estas crianças não são intersexuais, mas sim meninas que precisam de reparação. Ou seja, essa lei determina que há crianças que é preciso operar necessariamente. Para nós, este é um atraso enorme.

Como você acha que estas crianças devem ser registradas?
Nós não somos contrários a uma modificação do registro civil, mas ela precisa atingir a todos, e não somente os intersexuais. Por exemplo, se for para não declarar sexo no registro civil, que assim seja para todos. E se for para criar uma terceira alternativa, que ela seja opcional para todos, e não somente uma obrigação médica. O que acontece na Alemanha é que os médicos vão dizer que a criança não tem sexo e se os pais quiserem declarar um, vão continuar tendo que submeter a criança a uma operação. Nós achamos que a não determinação do sexo é extremamente estigmatizadora, um espécie de “coming out” forçado da intersexualidade da criança.

Como foi a sua própria história?
Eu tenho quase 50 anos e faço parte da primeira geração de crianças mutiladas, quando tudo isso começou na França. Quando eu nasci, o médico disse aos meus pais: “ele é estranho, mas vamos deixá-lo assim por enquanto e vamos registrá-lo como menino”. Ele decidiu me examinar novamente, por dentro, quando eu tivesse um apendicite e eu fosse operado, afinal naquela época não havia ecografias. Aos sete anos, então, este dia chegou e eles constataram que eu era intersexual, mas eles não disseram isso aos meus pais. Eles disseram que eu era um menino que deu errado, mas que era possível me consertar. Eles me submeteram a 10 cirurgias, retiraram tudo que era feminino para me transformar num menino, afinal era assim que eu tinha sido registrado. Eu passei a minha infância no hospital ou me recuperando destas operações, sem que jamais os meus pais tenham sido informados sobre a minha real situação – e muito menos eu próprio. Após tanto sofrimento, meus pais decidiram que não me levariam mais ao hospital, e passaram a receber cartas ameaçadoras, dizendo que eu teria um câncer e a culpa seria deles. Este é um argumento usado até hoje, mesmo se o risco de desenvolver o câncer é praticamente o mesmo do que em pessoas ditas “normais”. O resultado é que vivi à margem da sociedade, frequentei muito pouco a escola. Foi somente em 2002, ao assistir um programa de televisão, que eu entendi quem eu era de verdade.

Você se sentia menino ou menina, na infância?
É o que eu chamo de paradigma intersexual: não ter o direito de dizer o que não nos disseram que nós somos. Desde quando eu era muito pequeno, me diziam que eu era um menino, mas no fundo eu sabia que eu não era um, assim como eu também sabia que eu não era uma menina. Eu vivia nesta terra de ninguém, e eu pensava no quanto o mundo era supreendente. Eu via meninas, eu via meninos – eu tinha irmãos e irmãs. Eu sabia perfeitamente o que era um corpo masculino e um corpo feminino, mas o meu corpo não era assim, e eu não vivia como um ou outro. Entretanto, eu não tinha palavras para expressar o que eu sentia porque isso tudo sequer existia para os outros. Foi necessário esperar até quase os meus 40 anos para eu saber que havia, sim, uma palavra, e que eu existia e que outros como eu existiam. Fui ao encontro desta comunidade para existir como eu mesmo.

E quem é você?
Eu sou eu mesmo. Vivo oficialmente como um menino, até porque não há outra possibilidade, mas eu sou incapaz de ser um menino ou uma menina, um homem ou uma mulher. Faço como posso, afinal a sociedade é binária. Eu acho que tudo ficou mais fácil quando eu soube o que não queriam que eu fosse, e então eu aceitei viver socialmente como esperavam que eu vivesse, ao mesmo tempo em que tenho a minha vida pessoal, familiar, interior, que levo da forma como eu sou realmente. E isso não causa problema para ninguém: nem a minha família, nem aos meus filhos, nem ao meu companheiro.

Como a sua família encarou esta descoberta?
Na época, conversamos muito, porque eu achei que os meus pais soubessem e tive muita raiva deles. Um irmão mais novo serviu de intermediário e pudemos esclarecer tudo. Meus pais me amam como eu sou e não querem que eu seja outra coisa além do que eu sou.

E a sociedade, como o trata?
Eu moro em uma cidade bem pequena onde todos me conhecem. Mas na semana passada, por exemplo, fui a um casamento e uma pessoa, ao ver o meu companheiro, me disse; “então você é homossexual?”, e eu respondi: “não, eu sou intersexual”. Cada um pensa o que quiser. Tenho a sorte de viver em uma região tolerante, na Bretanha. Mas nas cidades grandes, já fui agredido muitas vezes. Me chamam de gay, de travesti... Não me sinto em segurança quando estou nas cidades. É complicado quando temos um corpo que não é conforme às expectativas da sociedade.
 

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