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O Mundo Agora

A França sempre defenderá a palavra livre e a impertinência contra todas as vacas sagradas

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Foi a maior manifestação de massa da França no século XX. Congregou todo mundo: direita, esquerda, ateus, crentes, judeus, muçulmanos e cristãos, franceses e estrangeiros. Sem bandeiras partidárias ou sindicais. Sem slogans – salvo o “eu sou Charlie”. E ainda por cima com a participação de 40 representantes de países estrangeiros, africanos, árabes, europeus, norte-americanos.... Só minúsculas minorias, estupidamente intolerantes, ficaram de fora. A unanimidade foi tanta que merece uma tentativa de explicação.

Milhares de pessoas foram às ruas em Paris neste domingo (11) em homenagem as vítimas do atentado à revista Charlie Hedbo, e dos acontecimentos que o sucederam.
Milhares de pessoas foram às ruas em Paris neste domingo (11) em homenagem as vítimas do atentado à revista Charlie Hedbo, e dos acontecimentos que o sucederam. Reuters/Gonzalo Fuentes
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Se houve tamanha comunhão e emoção compartilhada, é que a brutalidade fria do atentado terrorista contra a revista satírica Charlie Hebdo tocou fundo na alma da sociedade francesa. As expressões impertinentes, debochadas, irreverentes com a política, os políticos, as religiões, os cleros de qualquer confissão, os pobres e os ricos, isso tudo faz parte do DNA francês. Um país cujo esporte nacional são as guerras intelectuais e ideológicas precisa desta liberdade de opinião e de expressão públicas. É a única garantia para evitar a tentação da guerra civil de verdade e manter o convívio democrático.

Liberdade de sátira

Não há liberdade de expressão, sem liberdade de imprensa. E essa não existe sem liberdade de sátira – até de mau gosto, até provocadora. Os franceses gostam de dizer que a liberdade de imprensa só se usa se não for usada. Se não for sempre testada até os últimos limites. Fuzilar a redação de um jornal, não é só tentar assassinar o fundamento da democracia, é também tentar massacrar a própria base do convívio social na França.

A manifestação de domingo foi a maneira de afirmar que todos os franceses – quaisquer que fossem suas outras identidades, sociais, étnicas, religiosas ou políticas – não estavam a fim de aceitar que criminosos sanguinários pudessem por em causa o que eles tem de mais sagrado: a liberdade de poder, sem passar às vias de fato, proclamar todo tipo de convicção e até poder xingar quem não concorda.

A tolerância, que vai até o direito à provocação, é a pedra basilar de uma sociedade democrática. É a única verdadeira garantia contra as ditaduras e os fundamentalismos, sejam eles de cunho religioso ou político.

Nada é mais perigoso do que aqueles que estão convencidos de que têm sempre razão e que o resto são inimigos que devem ser silenciados ou exterminados. Claro não existe liberdade de expressão absoluta. Mas a solução não é nem cerceá-la nem apelar para a autocensura. A solução é a lei.

É a lei que deve garantir a total liberdade de opinião e definir também o que é crime ou delito. Mas essa lei só será legítima se for estabelecida por legislativos e judiciários independentes a partir de verdadeiros debates livres e democráticos.

Charlie Hebdo podia provocar e debochar, mas dentro dos parâmetros da lei. A difamação, o apelo à violência, a glorificação do racismo, são sancionados pelos tribunais, mas não há nenhuma lei contra a blasfêmia. Graças a Deus! Nem contra as caricaturas de mau gosto. E se alguém (ou um grupo) se sente ofendido, sempre terá a possibilidade de apresentar uma denúncia ou de tentar mudar a legislação, mas não de impor a sua vontade na ponta de uma kalashnikov.

Gostinho de liberdade

É tudo isso que faz da França um símbolo da liberdade de opinião no mundo, mesmo se aqui existe racismo, discriminação, hipocrisias e intolerâncias, como em toda parte. Os
franceses não têm nada de santinhos de presépio. Mas o resto do mundo sabe – e os quase 4 milhões de franceses na rua confirmaram – que a sociedade francesa sempre defenderá esse princípio libertário.

E é por esta razão que a repercussão dos atentados contra o “Charlie” foi mundial e que um monte de representantes de Estados estrangeiros (inclusive regimes autoritários) vieram manifestar em Paris, uma das pouquíssimas metrópoles realmente cosmopolitas no mundo, junto com Nova Iorque e Londres.

Quem não se sente parisiense em Paris? E Paris, não é nada mais do que esse gostinho de liberdade. Amanhã, as divisões políticas e sociais vão voltar, ninguém sabe se os franceses serão capazes de enfrentar o terrorismo e resolver de maneira inteligente e pacífica todas as tensões religiosas, étnicas e sociais que ameaçam engolir o país.

Mas uma coisa é certa: a França e os franceses sempre levantarão a bandeira da palavra livre e da impertinência contra todas as vacas sagradas.

* Alfredo Valladão, do Instituto de Estudos Políticos de Paris, escreve às terças-feiras para a RFI
 

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