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Fato em Foco

Motivo de polêmica no Enem, Simone de Beauvoir foi fundamental para o feminismo

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A inclusão de uma citação da filósofa francesa Simone de Beauvoir na prova do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) causou polêmica. Vozes conservadoras e religiosas consideraram o trecho da obra O Segundo Sexo, de 1949, muito provocador. Ele diz: "Não se nasce mulher, torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino". A questão pedia para o candidato indicar a principal marca do movimento social que Beauvoir ajudou a estruturar - o feminismo.

Simone de Beauvoir
Simone de Beauvoir
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Do outro lado, intelectuais, educadores e feministas comemoraram o fato de a questão de gênero ter sido trazida à luz em uma prova dessa dimensão. A escritora francesa, que foi mulher do também filósofo Jean-Paul Sartre, deixou um grande legado para a luta das mulheres por igualdade, como nos explica a psicanalista, autora e crítica literária Maria Rita Kehl. "Embora existisse o feminismo desde as sufragistas na Inglaterra e na França no século 19, nós feministas contemporâneas podemos considerar que o feminismo acontece depois do livro O Segundo Sexo. Não no sentido científico da palavra, mas na sua potência em transformar as mulheres e transformar inclusive o modo como os homens viam as mulheres. Pois havia leitores do livro", diz.

Para Kehl, trata-se de uma obra fundamental para o feminismo. "Ela chama a atenção para esse segundo lugar da mulher de uma maneira muito interessante. Admite que é um segundo lugar na cultura sem, em nenhum momento, justificar com a maternidade, que sempre foi a justificativa mais frequente. Mostra que não há diferença entre homens e mulheres na potência de intervir na vida pública, no espaço público, na realização pessoal. Não existiria feminismo sem Simone de Beauvoir. Talvez haveria outra coisa, mas não o feminismo que houve no século 20."

Existencialismo

Mas o legado de Simone de Beauvoir ultrapassa o feminismo, como explica Sergio Kodato, professor de psicologia social da Universidade de São Paulo. "Ela foi importante para a questão da autonomia do indivíduo. O existencialismo prega que as pessoas são responsáveis pela sua existência. Então isso implica a busca pela autonomia, independência e liberdade. E outro legado importante foi a questão da sexualidade, pois ela entendia que a opressão das mulheres passa não só pela repressão sexual, mas pela subjugação sexual ao homem. Nesse sentido a vida pessoal dela é um depoimento importante, já que o casamento dela com o Sartre era aberto. Ela foi conhecida também por ter várias amantes do sexo feminino. Ela foi vanguardista também na liberação sexual das mulheres."

Para Maria Rita Kehl, o livro O Segundo Sexo, apesar de datado em alguns aspectos, tem relevância na atualidade - e poderia ensinar muito, segundo ela, às feministas radicais, que pregam a superioridade das mulheres, e não a igualdade. "Muita coisa ficou datada até pela potência da sua obra. Ela já foi um elemento fortíssimo para transformar a realidade que ela denunciou. Talvez o que possa ainda ser captado em O Segundo Sexo seria uma atenção para o modo como as mulheres ainda se colocam inconscientemente, embora o mundo não seja o mesmo da primeira métade do século 20, dos anos 1950, 1960."

Kehl diz que o feminismo intolerante não era propagado por Simone de Beauvoir. "É uma espécie de sexismo, uma tentativa de criar uma superioridade do sexo feminino. Simone tinha um lado herdeiro do iluminismo, que igualdade é igualdade, não é trocar a superioridade. Algumas radicalidades femininas poderiam melhorar com a leitura do livro."

Críticas infundadas

Sergio Kodato considera que o uso da citação de Beauvoir no Enem é um grande avanço e uma demonstração de que o exame busca um perfil mais crítico do aluno. "Tanto essa questão quanto a redação sobre a violência contra a mulher indicam que se pedia um perfil mais crítico do aluno, mais conhecedor das questões sociais. Crítico no sentido de um posicionamento inovador dentro de um espectro mais à esquerda."

O professor considera infundadas as críticas à questão. "Os setores conservadores chiaram como se o governo e o PT quisessem encaminhar o ensino médio para uma certa doutrinação. Na verdade, há muito tempo se cobra que o aluno do ensino médio tenha uma formação ética e crítica e seja participativo e ativo em questões sociais. Então as críticas são infundadas e paranoicas, uma insistência dos setores conservadores de verem demônio em tudo quanto em lado. Entendo que a questão do Enem é um avanço, no sentido de exigir um claro posicionamento social e crítico dos alunos do sistema educacional brasileiro."

Simone de Beauvoir morreu de pneumonia em Paris, em 1986, aos 78 anos de idade. Seu corpo encontra-se sepultado no mesmo túmulo de Jean-Paul Sartre no Cemitério de Montparnasse, na capital francesa.

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