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“Situação da mulher na Turquia piorou com governo AKP”, afirma estudante turca

Uma recente agressão sofrida por uma mulher num ônibus na Turquia voltou a mobilizar o movimento feminista no país. O agressor alegou que a vítima “mereceu” porque estava usando um short durante o ramadã, período sagrado para o Islã, levando centenas de mulheres às ruas de Istambul carregando cartazes que diziam “Não mexa com minha roupa”. 

Estado de emergência tornou a situação da mulher ainda mais precária na Turquia, segundo jovem turca.
Estado de emergência tornou a situação da mulher ainda mais precária na Turquia, segundo jovem turca. RFI
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Marcos Fernandes, especial para a RFI

“Não vamos obedecer, não vamos ficar em silêncio, não vamos ter medo. Vamos ganhar através da resistência”, bradavam as manifestantes durante o protesto ocorrido no último sábado (29) na Turquia, organizado por mulheres que se dizem cansadas de sofrer violências físicas e verbais por causa de suas indumentárias.

Elas exigiam que as mulheres tenham o direito de se vestir como desejam, seja com véu, de calça ou de saia, e declaravam que as críticas em torno das escolhas de roupa têm aumentado na Turquia, onde as agressões contra as mulheres tem crescido nos últimos anos.

Segundo informações da organização “Pare com os feminicídios”, 328 mulheres foram mortas em 2016 e 173 só nos primeiros cinco meses de 2017. Além disso, 37% das mulheres turcas dizem ter sofrido violência física, de acordo com uma pesquisa de 2014 do Ministério da Família, que visitou 15 000 residências.

Dados do Instituto Turco de Estatística (TÜIK) de 2016 mostram que as mulheres representam 49,8% da população total, contando mais de 39 milhões de turcas. Dessas, 9% com mais de 25 anos são analfabetas, contra apenas 1% dos homens, e 13% têm diploma do ensino superior. Elas são 91% a considerar “apropriado” que uma mulher trabalhe, enquanto 78% dos homens pensam dessa forma.

Na política, a Turquia conta com somente uma ministra, Fatma Betul Sayan Kaya, que se ocupa do Ministério da Família, e somente 79 dos seus 548 deputados são mulheres.

“A sexualidade das mulheres é um tabu na Turquia”

Fatma e Aysun*, duas jovens turcas de 25 anos que estudam gênero e sexualidade na França, se encontraram com a RFI a bordo do Rosa Bonheur sur Seine, bar da moda em Paris, para discutir sobre a situação da mulher na Turquia.

No meio do ruído de taças com drinques coloridos e dos barcos com turistas que passeavam pelo rio Sena, a conversa teve um gosto agridoce. “Acho que a situação social piorou de verdade após o golpe militar”, declara Fatma. “Qual deles?”, pergunta Aysun, irônica. As duas riram. Em sua breve história como república, a Turquia já esteve nas mãos dos militares por quatro vezes entre 1960 e 1997.

Aysun na ponte Alexandre III em Paris, onde faz seus estudos de gênero.
Aysun na ponte Alexandre III em Paris, onde faz seus estudos de gênero. RFI

Aysun diz que durante a última década, período de ascensão do partido islamita-conservador AKP, uma certa ideia de religiosidade se tornou mais visível na sociedade turca e isso influencia as relações sociais. “A violência contra a mulher tem aumentado e para mim isso é culpa do AKP. A partir do momento em que você sai na rua, você sente na pele essas injustiças de gênero, que são um fato social na Turquia”, afirma.

O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, que chegou ao poder em 2002, afirmou num discurso de 2014 que a mulher tem um único papel atribuído pelo Islã: a maternidade. “O caráter das mulheres, seus hábitos e seus atributos físicos são diferentes. Não se pode exigir de uma mulher que ela faça o mesmo trabalho que um homem, como fazia-se no regime comunista”, declarou.

Já Fatma declara que a sexualidade feminina sempre foi um dos grandes tabus na Turquia, independentemente do AKP. “Talvez com o governo de Erdogan as coisas tenham ficado um pouco pior, mas a sociedade turca sempre teve problemas com a sexualidade das mulheres”.

Ela lembra, entretanto, que a luta feminista em seu país conseguiu trazer mudanças para o status das mulheres e ganhos como o direito ao voto em 1934, dez anos antes da França. “Já durante o Império Otomano, nós tivemos mulheres que criticavam pouco a pouco o lugar que elas ocupavam na sociedade. Elas lutaram para obter direitos políticos e sociais, mas se esqueceram da liberação sexual”.

Justiça arbitrária

Para Fatma, a justiça turca é um grande empecilho na luta pela segurança das mulheres, pois tem tendência a favorecer sempre o lado dos homens. “Nós precisamos de advogados e de procuradores que trabalhem a favor das mulheres. Mesmo no nível constitucional, os homens se defendem utilizando argumentos como ‘ela estava usando uma saia curta demais’”, afirma. “Precisamos de alguém que diga que uma vestimenta não é argumento de defesa para agressão. Se pelo menos um procurador tiver essa coragem, tudo pode mudar”.

“A justiça é bastante arbitrária na Turquia e com o estado de emergência isso só piorou, eles podem fazer o que quiser”, reforça Aysun, fazendo referência ao status excepcional no qual se encontra seu país atualmente, que dá ao presidente Erdogan o direito de tomar medidas como toque de recolher, limitação e proibição da circulação e de manifestações e censura das publicações e emissões de TV e rádio. O estado de emergência foi instaurado na Turquia em julho de 2016, após o golpe de Estado militar fracassado, e tem sido renovado desde então.

“Se seguirmos a legislação, o argumento da saia curta demais ou do ramadã não pode ser aceito”, declara a estudante. “Na teoria, a Turquia é um país onde o direito das mulheres existe, mas na prática é um pouco diferente. Ela assina todos os documentos da União Europeia de igualdade entre os gêneros, mas como ela os executa não sabemos”.

Fatma e Aysun não são as primeiras a acusarem a justiça turca de ignorar a causa das mulheres. A Fundação para a solidariedade das mulheres, baseada em Ancara, publicou em um relatório que, desde o golpe de estado fracassado de 2016, várias denúncias de violência feitas por mulheres foram rejeitadas pela polícia, que se disse “mais ocupada com outras coisas”. Zeki Ünlüer, pai de Pinar Ünlüer, jovem de 29 anos morta em 2012 por um conhecido que a havia pedido em casamento, declarou na época: “Gostaria de perguntar a um ministro: se fosse sua criança, sua filha, sua mãe, o que você acharia? Nossas mulheres estão morrendo e vocês não fazem nada”.

Foco na educação

Para que a violência contra as mulheres seja interrompida, deve haver uma mudança na educação dos homens, de acordo com Aysun, que desenvolve uma dissertação de Mestrado sobre a influência psicológica e sociológica do exército nos jovens turcos.

“Eu sempre defendi a ideia de que é preciso se focar no estudo do comportamento dos homens, sobretudo na Turquia, onde as forças armadas são uma entidade que fascina os jovens ao propor um modelo único do que é um homem”, diz Aysun. Suas ideias reforçam a tese de Bora*, doutorando turco de 27 anos, que propõe o argumento de que a masculinidade turca se constrói através de rituais como a passagem pelo serviço militar obrigatório, uma experiência marcada pelo uso da força física.

Para se ter uma ideia do papel do serviço militar na construção da masculinidade na Turquia, Bora explica que certos homens, que se recusam a passar pelo processo devido sua orientação sexual, devem “provar” que são homossexuais, já que os mesmos não são aceitos no exército. “Eles te dão um documento chamado ‘Papel Rosa’ e, com ele, você está livre, mas ao mesmo tempo fica estigmatizado na sociedade”, explica à RFI.

“Você deve se comportar de uma maneira feminina, usar saias, ter trejeitos marcantes ou dizer que na infância brincava de boneca. Você joga com os clichês. Por fim, um médico dirá se você é apto ou não ao 'Papel Rosa'”. Os estudos fora do país permitiram a Bora, que é homossexual, o adiamento do serviço militar, que ele espera nunca ter que realizar.

*Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados.

(Veja abaixo o vídeo dos protestos de 29/07)

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