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Homofobia

Às vésperas da Copa do Mundo, homofobia preocupa na Rússia

A Rússia se prepara para acolher torcedores do mundo inteiro durante a Copa do Mundo, que começa no dia 14 de junho. Como em qualquer evento esportivo global, são esperados visitantes de várias nacionalidades, etnias, mas também de diferentes orientações sexuais e identidades de gênero. Porém, o país é frequentemente apontado por episódios de homofobia latente, inclusive nas grandes cidades. Para as associações locais, os turistas não correm risco, mas isso não quer dizer que as autoridades russas estão dispostas a aceitar as diferenças.

Manifestação contra homofobia nas ruas de São Petersburgo, na Rússia, em abril de 2018.
Manifestação contra homofobia nas ruas de São Petersburgo, na Rússia, em abril de 2018. REUTERS/Anton Vaganov
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Em janeiro de 2018, os russos Pavel Stotsko e Evgeniy Voytsekhovsky realizaram o sonho do casamento. Como a união entre pessoas do mesmo sexo não é autorizada em seu país de origem, os dois rapazes foram até Copenhague, na Dinamarca, onde o casamento gay é autorizado. Empolgados com a festa, eles compartilharam a alegria do momento nas redes sociais, com fotos da cerimônia e dos documentos carimbados.

O que os dois recém-casados não imaginavam é que essas imagens iriam torná-los imediatamente personae non gratae na Rússia. Graças a uma falha do sistema legislativo russo, que reconhece automaticamente os casamentos celebrados do exterior, ao voltarem a Moscou, Stotsko e Voitsekhovsky tiveram seus documentos carimbados pelas autoridades russas. Sem querer, a repartição pública consolidou o primeiro casamento gay do país.

O governo logo se deu conta do erro, mandou embora o funcionário responsável pela carimbada embaraçosa, e cancelou os passaportes dos rapazes. Mas já era tarde demais: os dois começaram a ser ameaçados, com telefonemas anônimos, e tiveram internet e eletricidade cortados, sem nenhuma explicação. Temendo as represálias, inclusive da polícia, que passou a coagi-los na porta de casa, os dois deixaram o país às pressas.

O episódio é apenas um exemplo do tratamento dado às minorias sexuais no país. Pressionada pelo Conselho da Europa, ao qual Moscou pretendia aderir, a Rússia descriminalizou a homossexualidade em 1992. No entanto, os LGBTQ continuam sendo mal vistos na sociedade. Segundo um estudo independente, divulgado no início deste ano, 83% dos russos consideram a homossexualidade como algo “condenável”. E essa opinião, presente inclusive entre os menores de 30 anos, vem aumentando nas últimas duas décadas, de acordo com a mesma pesquisa.

Homofobia também nas grandes cidades

Os crimes visando a comunidade LGBTQ dobraram em cinco anos, segundo um estudo do Center for Independent Research, publicado em 2017. E esses ataques acontecem em toda a Rússia, inclusive nos grandes centros, como aponta o músico Erik, que vive na capital russa. “Eu morei em muitos países e posso garantir que Moscou é como um outro planeta quando o assunto é tolerância. As mentalidades não evoluíram e as pessoas não têm a mesma abertura que podemos constatar no exterior, seja sobre questões de raça ou de sexualidade”, comenta o jovem, sem dar detalhes. “Acho que os russos ainda vão levar uns 100 anos para evoluir”, diz Erik, que não esconde o seu pessimismo.

Igor Kotchetkov, diretor da Russian LGBT Network, em São Petersburgo.
Igor Kotchetkov, diretor da Russian LGBT Network, em São Petersburgo. RFI

A Russian LGBT Network, a mais importante ONG de defesa das minorias sexuais do país, é mais direta na denúncia: “Há muitas organizações nacionalistas ou religiosas que monitoram os eventos da nossa comunidade e, frequentemente, comparecem para provocar ou até atacar os participantes”, conta Igor Kotchetkov, responsável pela entidade, que tem sede em São Petersburgo. “Em um desses episódios, homens armados entraram na sede de uma associação e agrediram os militantes. Uma pessoa perdeu um olho. Isso aconteceu em 2013 e até hoje o processo ainda está em andamento, sem que ninguém tenha sido punido”, relata.

Sem esquecer a situação na Chechênia, república que faz parte da Federação Russa e onde as denúncias de perseguições e agressões homofóbicas se multiplicam. Em abril de 2017, o jornal independente russo Novaya Gazeta chocou a comunidade internacional ao relatar que mais de 100 homens teriam sido capturados em uma ação coordenada visando homossexuais, no que foi comparado a um “campo de concentração gay”.

Lei “anti-gay”

Uma das razões que teriam contribuído para o aumento dessa homofobia latente, segundo as associações locais, foi a entrada em vigor de uma legislação federal de 2013, conhecida como “lei anti-propaganda gay”. Oficialmente, o texto condena a “propaganda de relações sexuais não-tradicionais diante de menores”, com multas e penas de prisão. Severamente criticada pelas organizações de defesa dos direitos humanos, a lei é vista por muitos como uma associação direta entre pedofilia e homossexualidade, o que acabou, de uma certa forma, legitimando um discurso cada vez mais homofóbico no país.

A banalização dessa discriminação é algo frequente, como visto durante a eleição presidencial, em março deste ano, quando um vídeo de campanha viralizou nas redes sociais. O filme pró-Putin, que tinha como objetivo mobilizar os eleitores para o pleito, conta com ironia a história de um pai de família que é obrigado a conviver com um homossexual em sua casa, em razão de uma “lei absurda” que seria imposta, segundo o roteiro, em caso de derrota de Vladimir Putin. Na época, a candidata Ksenia Sobtchak, da oposição, se revoltou com as imagens, consideradas homofóbicas. “Não se deve fazer piada mostrando a comunidade LGBT como uma ameaça”, reagiu a então presidenciável, uma das únicas a defender o casamento gay durante a campanha.

Corações queimados e enterrados

Diante desse contexto, que alguns militantes locais classificam de “homofobia institucionalizada”, muitos gays preferem deixar o país. “Temos medo de ser atacados em qualquer lugar”, conta Elie, um adolescente de 16 anos. “Se a situação não melhorar, vamos tentar ir embora da Rússia assim que pudermos”, afirma, ao lado do namorado. 

Em julho de 2017, o apresentador de televisão Andrey Afanasyev, do canal de tendência cristã ortodoxa Tsargrad, chegou a fazer um programa no qual oferecia, de forma irônica, uma passagem de avião para os gays que decidissem deixar o país. “Recentemente, a Califórnia propôs facilitar o acesso ao green card para os perversos russos. Então nossa equipe decidiu apoiar essa iniciativa e pagar uma passagem, só de ida, para quem apresentar um atestado médico provando que é sodomita ou que tem outro tipo de perversão. Assim, eles vão poder cometer seus pecados lá, abertamente”, anunciava o apresentador.

O uso desse tipo de vocabulário é frequente no país. O vice-diretor de uma emissora de televisão pública chegou a propor que os corações dos doadores de órgãos gays fossem “queimados ou enterrados”, pois eles seriam “incapazes de salvar a vida de alguém”.

Violência homofóbica registrada contra torcedores

Com a aproximação da Copa do Mundo, vem à tona o receio de que a falta de tolerância de franjas mais conservadoras da população possa se manifestar durante o evento, diante dos olhos do mundo. A associação britânica de torcedores Fare, que luta contra a discriminação no futebol, já recomendou aos homossexuais que pretendem assistir os jogos sejam prudentes. A associação também preparou um guia com indicações de como se comportar para evitar problemas.

Mas quem conhece o país afirma que não haverá risco de agressão durante o evento. “Quem decide tudo aqui é o dinheiro. E muito dinheiro está sendo investido para que a Copa do Mundo aconteça corretamente e sem problemas. Então acredito que não haverá nenhum tipo de perigo real”, comenta Erik. “Mas as pessoas devem saber que estão vindo para um país marcado por tradições retrógradas”, alerta.

“Como vimos nos jogos olímpicos de inverno, em Sochi, as autoridades vão fazer tudo para que o evento seja seguro, pois eles querem que os torcedores e turistas estrangeiros se divirtam e se sintam seguros” completa Igor Kotchetkov, do Russian LGBT Network. Na época dos preparativos dos Jogos de Inverno, Putin chegou a dizer que o governo iria fazer tudo para que os torcedores gays se sentissem "confortáveis" no país.

No entanto, apesar do tom politicamente correto, no mesmo discurso o presidente pediu que esses torcedores "deixassem as crianças em paz", em uma declaração duramente criticada por associar novamente homossexualidade e pedofilia. Além disso, durante Jogos Olímpicos de Sochi, em 2014, vários torcedores homossexuais foram agredidos nas ruas.

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