Um passeio pelo “centro fantasma” de Beirute reconstruído após anos de guerra
Tour organizado por cientista político revela nuances da polêmica reconstrução da área central da capital libanesa.
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Mariana Durão, especial para a RFI Brasil de Beirute
Arranha-céus envidraçados, projetos arquitetônicos ousados, asfalto perfeito, restaurantes chiques, grifes como Louis Vuitton, Dior, Hermès e Balenciaga brotando a cada esquina. A descrição lembra Dubai, mas é do centro de Beirute.
A elegante área da capital libanesa destoa dos demais bairros da cidade, onde as marcas de balas nas paredes falam por si. A região central parece um mundo à parte, onde desavisados podem até esquecer por um momento que o país viveu 15 anos de uma violenta guerra civil no passado recente (1975-1990).
Um contraponto ao cenário de belas e luxuosas vitrines tem sido oferecido pelo cientista político Marc Ghazali, 21, recém-formado pela Universidade Americana de Beirute. No último ano e meio ele tem realizado um passeio guiado para turistas estrangeiros e (poucos) locais interessados em conhecer uma versão mais realista da reconstrução do centro de Beirute no pós-guerra.
O plano executado pela construtora Solidere – acrônimo para Societé Libanaise pour le Développement et la Reconstruction de Centre Ville de Beyrouth – mudou completamente o tecido urbano e social da região. As antigas construções, residências e comércio populares deram lugar a prédios luxuosos e ao Beirut Souks. Apesar do nome, trata-se de um shopping com lojas caras que em nada lembra a atmosfera dos tradicionais souks (mercados) ali instalados antes da guerra.
Na prática, poucos cidadãos de Beirute têm cacife para morar ou frequentar o novo centro. Muitos apartamentos foram vendidos a investidores endinheirados de países próximos como a Arábia Saudita, que frequentam Beirute nos feriados. As ruas vazias explicam porque o tour foi batizado por Ghazali de “Layers of a ghost city”, algo como "nuances de uma cidade fantasma", em tradução livre.
Mais que uma fonte de renda – Ghazali trabalha em uma organização humanitária de assistência a refugiados sírios –, o passeio é definido pelo guia como um protesto silencioso, onde ele tem a oportunidade de jogar luz sobre capítulos marginalizados da história. Foram nove meses de pesquisa e entrevistas com pessoas envolvidas na reconstrução e arqueólogos até sair às ruas com o tour.
“Sinto que o novo centro de Beirute não foi planejado para pessoas como eu, mas para uma elite que muitas vezes nem libanesa é. O tour é uma forma de encorajar os cidadãos comuns a exercerem seu direito de circular pela área, clamar pelo espaço público. Ainda que não possamos pagar para viver naqueles prédios temos o direito de estar nas ruas”, diz Ghazali, que cresceu vendo o centro de sua cidade como um grande canteiro de obras.
A Solidere foi criada nos anos 1990 para implementar a reconstrução, inicialmente delegada a um órgão governamental. O projeto é controverso porque levou a uma expropriação massiva na área – antigos proprietários receberam ações da companhia em troca – e pelo fato de a Solidere ter entre seus fundadores o ex-primeiro-ministro libanês Rafiq Hariri, pai do atual premiê do país, Saad Hariri. Após viver durante anos na Arábia Saudita, o bilionário voltou ao país como um dos mais influentes políticos no pós-guerra.
Em 2005, Hariri foi morto em uma explosão a bomba na porta do St. George Hotel, hoje o principal símbolo da resistência à reconstrução do centro de Beirute. Na época áurea da cidade, conhecida como “a Paris do Oriente Médio” nos anos 1960, o hotel era um dos mais luxuosos do mundo e "queridinho" de políticos, diplomatas, agentes secretos e celebridades. Na versão atual, o edifício à beira-mar está fechado e chama atenção não pelo glamour, mas por ostentar um gigantesco outdoor com a frase “Stop Solidere”.
Há anos o proprietário do St. George trava uma briga judicial com a empresa em função do acesso à praia, que o hotel afirma ter sido perdido com a construção da Zaitunay Bay. A reclamação é que a bela marina erguida pela Solidere, onde hoje há cafés, restaurantes e um iate clube, invadiu o espaço destinado ao hotel na orla, prejudicando sua operação. Ou seja, uma briga de titãs do setor privado com interesses opostos.
O St. George é o ponto de partida do tour de Ghazali, que começa com uma advertência: “Desculpe desapontá-los, mas esse não é um tour sobre a Guerra Civil”. Apesar do aviso, ele passa pelo tema, quase inevitável quando se trata do Líbano. Ao longo do tour, ele evita simplificações, procura dar sempre os dois lados da moeda e reafirma como um mantra que uma resposta sempre “depende de a quem você perguntar”.
Dentro da proposta de promover um turismo politizado, o jovem põe na mesa teorias que refutam o clichê de que a Guerra Civil do Líbano foi apenas fruto de um confronto sectário religioso. O cientista político aponta um caminho mais complexo, envolvendo fatores como desigualdade social, desequilíbrio na distribuição do poder político entre cristãos e muçulmanos e, um ponto chave em sua visão, divergências internas quanto ao apoio à Organização para a Libertação da Palestina (OLP).
O "elefante" na sala
Antes de seguir no tema da gentrificação do centro, o guia aponta para um enorme prédio branco, abandonado e crivado de balas em meio a uma área nobre, próxima à orla de Beirute, onde ficam hotéis estrelados como o Phoenicia e o próprio St. George. O edifício abrigava o Holiday Inn, hotel de luxo inaugurado apenas um ano e meio antes da eclosão da guerra.
Quase três décadas após o fim do conflito, os sócios ainda não decidiram o que fazer com ele. O prédio segue como uma espécie de memorial informal da guerra, assunto tabu na sociedade libanesa. “É impossível ignorar o Holiday Inn. É o elefante na sala, ou melhor, na cidade”, diz Ghazali.
O local foi palco da chamada “batalha dos hotéis”, cujas suítes eram invadidas e usadas como bunker nos primeiros dois anos da Guerra Civil. Cada vez que uma milícia tomava um hotel da outra, inimigos eram jogados vivos dos terraços, relata o guia, numa tentativa de confrontar a amnésia coletiva causada pela transformação do centro, a poucos metros dali.
O percurso segue rumo à Zaitunay Bay e depois ao Beirut Souks, onde sítios arqueológicos encontrados durante as obras foram preservados, mas ficam praticamente escondidos dos frequentadores. Não há placas explicando do que se trata e sem um guia local seria difícil até mesmo visualizar algumas ruínas.
Na década de 1990, o centro de Beirute era um dos maiores parques urbanos de escavação arqueológica do mundo. A atividade acabou esbarrando na recuperação da área.
Os critérios para preservar ou não um determinado sítio são outro tema explorado no passeio. Fontes pró e contra a reconstrução ouvidas por Ghazali apontam que a decisão por vezes era orientada pela busca de um equilíbrio sectário. Isso porque de acordo com a origem da estrutura encontrada, ela seria uma prova concreta da presença histórica de uma determinada religião no país.
Cem anos de solidão
Apesar das críticas ao projeto de reconstrução, Ghazali faz questão de abrir espaço também para os argumentos de seus apoiadores. Parte da população entende que a Solidere se responsabilizou pela árdua tarefa de recuperar o centro destruído durante a guerra, o que provavelmente não teria sido feito pelo governo libanês. Já os opositores enxergam uma equação desigual entre interesse privado e interesse público na condução do projeto.
Na visão de Ghazali, o centro reconstruído de Beirute vai permanecer como um lugar elitizado ao menos pelos próximos cem anos, ou até a ascensão de uma nova classe ao poder.
Nesse caso, a atual “downtown area” (área central) poderia voltar a ser um local popular. Ele cita o exemplo da transição entre a era otomana e a dominação francesa (1920-1943), que alterou a arquitetura e deslocou o centro de poder da Praça Martyr para a Praça da Estrela. “É isso que espero, mesmo que não aconteça enquanto eu viver”, diz.
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